Por Dentro da Lei

Por Dentro da Lei

28 de novembro de 2008

Mudança de tramitação das Medidas Provisórias

A Câmara dos Deputados aprovou na última terça-feira projeto de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 511/06, que altera as regras de tramitação da chamada Medida Provisória (MP). A principal mudança é o fim do trancamento da pauta do plenário do Congresso como determina o sistema vigente. Além disto, o projeto prevê que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e do Senado ambas avaliem se a MP atende aos requisitos da Constituição. Atualmente, isso cabe a uma comissão mista que raramente é instalada, pois na prática é nomeado um relator que emite parecer tanto sobre esse aspecto quanto sobre o mérito, o que descaracteriza qualquer processo legislativo.

O projeto ainda dá à CCJ da Câmara e do Senado dez dias para analisar se a MP cumpre os denominados pressupostos constitucionais de relevância e urgência da matéria. O prazo será contado a partir do momento em que se inicia o tramitar em cada Casa. Se o relator considerar que há urgência e relevância – e se a CCJ aprovar esse parecer –, a MP será admitida.

A partir do momento em que a MP for admitida (ou se a CCJ não analisar a admissibilidade em dez dias), um relator será indicado e terá cinco dias para dar parecer quanto ao mérito e, se necessário, quanto à admissibilidade. Depois desses cinco dias, a matéria passará a tramitar em regime de urgência e ocupará o primeiro lugar na ordem do dia do plenário.

A mudança é celebrada pelos defensores da proposta e o motivo de comemorarem a aprovação como vitória ocorre porque, com a aprovação final do projeto, se evitaria uma interferência na capacidade do Poder Legislativo de estabelecer sua pauta, uma vez que o trancamento automático passaria a ser impossibilitado. Contudo, ainda há um impedimento que pode ser provocado após o prazo de quinze dias (dez dias para o juízo de admissibilidade pela CCJ e mais cinco para parecer do relator sobre o mérito), ocorrendo o que alguns outros deputados estão chamando de “trancamento disfarçado”, uma vez que vencido tal período a MP entra obrigatoriamente na ordem do dia.

No fundo da questão reside o problema velado do trancamento ser usado como meio de barganha pelos integrantes do Legislativo, que eventualmente tenham interesse em negociar propostas diversas com o governo, estratégia fartamente utilizada por aqueles que, diante do momento político e do grupo que ocupa o poder, acabam sendo denominados de oposição (que podem ser conceituados, numa outra leitura, como aqueles que ainda não tiveram suas pretensões atendidas).

As Medidas Provisórias são instrumentos que um verdadeiro Estado de Direito deveria renegar a qualquer custo porque ofendem o processo legislativo, baseado doutrinariamente todo ele em discussões e votação. Apesar de terem sido criadas com a Constituição de 88 – que comemorou seus vintes anos de existência sem grandes louros, pois se originou como cidadã e hoje em muitos ambientes é considerada ré – as tais Medidas nunca tiveram índole democrática pelo fato de autorizarem a criação de normas por mecanismos de gabinete, o que era extremamente criticado no sistema constitucional anterior em face da presença do então denominado decreto-lei (que hoje seria muito mais democrático em virtude das fortes restrições e requisitos para sua edição).

O processo legislativo deveria ser reformulado para se acabar com as Medidas Provisórias. Deveria prevalecer o regime de urgência das propostas ou projetos apresentados pelo governo, agilizando-se o andamento de sua votação. Medidas Provisórias só existem porque o Legislativo é falho!

Em resumo, a PEC nº 511/06 resolve o problema do Congresso e dos congressistas de não terem que trabalhar mais para desobstruir o plenário. As Medidas Provisórias continuarão a ser editadas à conveniência do Executivo, que manterá sua posição de legislador-mor. Com a pauta controlada, os congressistas poderão se dedicar mais às suas investigações em CPIs, de caráter midiático e eleitoreiro. Quanto a nós, o povo, bem, este é um outro problema.

29 de setembro de 2008

Globalização líquida

Globalização, eis a ordem do dia. Palavra que se torna lema, expressão mágica que, quanto mais se tenta explicar, mais opaca permanece. Inspirado em Zigmunt Bauman, a análise acentua diferenças quanto à sensação de mobilidade.

O desenvolvimento produtivo provocou independência em relação ao espaço, deslocando centros de decisões para longe das localidades, fazendo com que as companhias, as empresas e a própria produção passassem a pertencer aos investidores e não mais às pessoas diretamente relacionadas, bem como à localidade onde se sediavam. O poder das decisões flutua livremente sem restrições, sem amarras administrativas ou tributárias. Há uma superliquidez que fluidifica operações, permitindo ao capital se mudar sem maiores compromissos. As distâncias já não importam, as fronteiras geográficas são quase insustentáveis, “longe” já não é mais um dado objetivo, impessoal, físico. A mobilidade daí decorrente desencadeou um solapamento das totalidades sociais e culturais, representada pela fórmula de Tönies de que a modernidade significa a passagem da comunidade (Gemeinschaft) para a da sociedade (Gesenschaft).

O principal fator técnico da mobilidade foi o transporte da informação, muito mais veloz e de baixos custos, contribuindo vigorosamente para a quebra da noção espaço/tempo e permitindo uma polarização diferenciada da anterior entre “ricos e pobres” ou “capitalistas e trabalhadores”. A atual polarização pode ser descrita como o confronto entre “globais” e “locais”. Os primeiros não têm distâncias, atuam num tempo diferenciado quase imediato, enquanto os últimos estão irremediavelmente presos ao lugar onde seus pés se firmam. O conflito se descreve pelo isolamento dos primeiros em suas casas, locais de trabalho, veículos, permitindo sensação de liberdade experienciada de outra forma, num outro modelo. São “livres” daqueles que estão “presos” e não há espaço melhor para isto do que o ciberespaço. O território urbano é mero local de sobrevivência, o verdadeiro local de vivência é o virtual, desde que se possa pagar por ele. Não havendo mais local para trocas, para diálogo, perde-se toda visão comunitária e o âmbito do normal transmuda-se do discurso cotidiano para o discurso do isolamento. Normas são dadas de cima e não mais nascem do seio social, dos “costumes” locais. O “ethos” deixa de ser fruto da tradição, pois agora pertence a regiões elevadas, distantes, jamais questionadas. Os padrões de comportamento, as normas não sintetizam mais o anseio da nação, porém são concebidos em esferas desligadas da vida local e que no máximo podem redundar em mais sofrimento do que alegria para aqueles a que se destinam.

O Estado moderno é fruto da necessidade da unificação de medida objetiva do espaço, para que se pudesse estabelecer o que está “dentro e fora”, “perto e longe”. Com isto, foram substituídas todas as práticas comunitárias por práticas administrativas ou institucionalizadas como único ponto universal de divisões do espaço. A noção de soberania nasceu assim da objetivação do espaço e de sua subordinação a um mapa que permitisse controle.

O mapeamento possibilitava fiscalização do espaço do mesmo modo que o Panóptico de Foucault, no qual aqueles que são colocados dentro sentem-se vulneráveis à visibilidade dos que estão fora. Porém, a pós-modernidade esgarça a noção de soberania, pois permite outro mecanismo de controle: o Sinóptico, no qual muitos vigiam poucos como ocorre nos meios de comunicação de massa. Enquanto o Panóptico força as pessoas a ficarem numa posição a serem vigiadas, o Sinóptico seduz as pessoas à vigilância, mas uma vigilância controlada, jamais universal. “Globais” são aqueles que podem ser observados como, por exemplo, as celebridades; e o são pelos “locais”. No Panóptico havia a necessidade de inserir os vigiados no espaço de observação, no Sinóptico, os vigilantes querem ser inseridos no espaço de observação, mas ficam restritos ao seu respectivo espaço, de onde podem, conforme seu poder de consumo, alcançar maior ou menor posição de vigilância.

Se a velocidade da informação alcança valores vertiginosos, se o espaço é esquecido, se o Estado perde a soberania, se todos se tornam vigilantes, quem afinal está no controle?

Ao que parece, ninguém agora está no controle, pois talvez nem se saiba mais o que é estar no controle. Não há mais nenhuma localidade com arrogância bastante para falar em nome da humanidade, embora ecoem alguns gritos renitentes. Não há sequer uma questão única que possa captar e teleguiar a totalidade dos assuntos mundiais e impor a concordância global.

Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada no conceito de globalização. O significado mais profundo de globalização é transmitido pelo caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; não há centro, não há painel de controle, não há gabinete administrativo, não há sequer um tema para dirigir o discurso moderno. Tudo que é sólido não mais se desmancha, torna-se fluído.

27 de setembro de 2008

Reformas penais e o Plano de Legislação Criminal de Jean-Paul Marat

Ultimamente estão sendo discutidas nas várias esferas estatais mudanças na legislação penal para tornar mais eficiente o combate á criminalidade. É argumento recorrente que o código penal e o de processo penal são da década de 1940 (mesmo com a grande reforma de 1984 e outras posteriores). Será que o problema estaria mesmo no fato da lei ter uma data antiga ou residiria no modelo que fundamenta o pensamento penal, esgotado em si mesmo, diante de mudanças sociais e culturais do nosso século?

Talvez a leitura dos clássicos nos ajudasse a encontrar uma linha para orientar nossas pesquisas. A sugestão feita aqui é a do Plano de Legislação Criminal de Jean-Paul Marat.

Marat (1743-1793) foi médico, jornalista e político no período da Revolução Francesa, tendo importante atuação na divulgação dos ideais revolucionários, principalmente por meio do jornal que editava "O Amigo do Povo". Embora tenha escrito o Plano alguns anos antes, conseguiu editá-lo em 1790, no auge da Revolução, tendo este servido também de base para a elaboração do Código Penal francês de 1791.

No século XVIII o ocidente conheceu radical mudança em sua estrutura social, por conseqüência de fatores diversos, mas principalmente em virtude de nova concepção de mundo provocada por modelo de pensamento que rompia terminantemente com aquele divulgado no período medieval.

O movimento teórico que arquitetou tais idéias, denominado Iluminismo, pretendia ressaltar a capacidade racional humana e a necessidade de superação da visão política tradicional. Tal movimento provocou a transição do feudalismo para o capitalismo e na segunda metade do século XVIII, esse processo ocorreu em meio a um período conturbado denominado a Era das Revoluções, no qual eclodiram a Revolução Industrial, a Independência Americana e a Revolução Francesa, esta última iniciando nova fase histórica: a modernidade.

A Revolução Francesa é considerada prova definitiva da maturidade burguesa, pois com a queda do absolutismo sepultaram-se os últimos entraves ao capitalismo, derrubando-se a nobreza que vivia dos privilégios feudais e destruindo a base social que sustentava o Estado absolutista, encarnado na figura do monarca. Muito embora possa ser considerada burguesa, a Revolução contou com a soma de esforços do movimento camponês e popular, numa mobilização de camadas de classes.

Na frente revolucionária, Marat ocupava lugar à parte, pois persuadido que em todo lugar o povo caminha para a servidão enquanto os monarcas aumentam seu despotismo, ele tornou-se ardente propagandista do antifeudalismo e da antimonarquia.

O Plano de Legislação Criminal continua o desenvolvimento do pensamento político que Marat havia firmado e as análises contidas valiam para a França da época. Deve-se ter em mente que a obra é fruto de expressão do tempo em que foi germinada e resultado da pena de um autor ciente de sua realidade e que realizou intensa e radical atividade política.

O Plano apresenta sua preocupação com a concepção de indivíduo da época, sendo possível a percepção de excessivo cuidado na reunião de princípios norteadores da aplicação da lei penal. Tais princípios configuram a inflexão de um sistema de modelo feudal para um de modelo burguês, no qual a garantia da produção é fornecida pelo ordenamento legal e todos, incluindo o monarca ou o governante, se submetem à limitação e à ordem da lei. A obra de Marat aponta com clareza este momento em que surge o chamado Estado de Direito, que os autores denominam instalação da modernidade.

Seu projeto retratava a cosmovisão de uma época e seus reflexos são vistos hoje, mesmo em nossa legislação penal, que ainda segue um modelo burguês percebido por Marat em seu tempo. Sua importância, além de colaborar no desvelamento da falácia retributiva numa sociedade sem justiça distributiva, é a de alertar aqueles que se incumbem de preparar, interpretar e aplicar as leis de que seu próprio tempo precisa ser sentido, apreendido e compreendido. Sem isto, como preconizava Marat, as leis são meros decretos nas mãos de tiranos, sejam elas velhas ou novas.

15 de agosto de 2008

A problemática do feto anencéfalo

Neste semestre o STF (Supremo Tribunal Federal) analisa diversos casos polêmicos, como já divulgou a mídia. Um deles trata da possibilidade do aborto do feto anencéfalo.A questão não se resume num simples debate entre ciência e religião, entre dogma e pesquisa, entre luz e escuridão. O questionamento deita raízes mais profundas.Uma delas é saber se o feto anencéfalo por não “ter cérebro”, que o qualificaria como um ser racional, deve ter direito à vida garantido.

Perspectivas filosóficas de abordagem do conhecimento: Internalismo X Externalismo

Internalismo (conceito-chave: subjetividade)

Perspectiva advinda da modernidade filosófica e de linha iluminista de origem cartesiana. Estabelece relação “sujeito X objeto” na qual o conhecimento é dado pela idéia num movimento interno da razão, da mente ou da consciência e a linguagem é um instrumento, um meio também dado de expressar a idéia, a qual funciona como essência de tudo. Trabalha com a subjetividade (o conhecimento está no sujeito), porém busca uma verdade objetiva ou absoluta (conhecimento puro), não aceitando a verdade como relativa, precisando estabelecer um critério de “pureza” que forneça tal conhecimento puro e objetivo (mesmo a verdade estando no sujeito). Sendo a verdade absoluta, ela sempre existe, bastando encontrar sua essência ou substância essencial, por um critério racional específico.
Cada pensador desta perspectiva possui o seu modo particular de estabelecer a objetividade (vide esquema). Em comum, não aceitam as “impurezas” (precisam se livrar delas) qualquer que seja a denominação tal como ideologia, pré-compreensão, pré-juízos, horizontes, cosmovisão, rede de linguagem, comunicação intersubjetiva, relações culturais. A razão (ratio) é instrumento de separação e medida de ordem lógica, trabalhando com comparações por sobreposição (analogia por subsunção). A justificação racional da verdade é fornecida pela razão do sujeito que alcança a idéia da essência dentro de sua mente e a partir daquela faz associações lógico-subsuntivas, agregando conhecimentos verdadeiros, que retratam a realidade considerada pré-existente, a qual pode ser apanhada em sua essência. A realidade é um objeto do mundo que já existe independentemente do sujeito e este precisa observá-la para dela retirar a essência, configurando a experiência vivida como um experimento concreto (experimentos físicos) ou abstrato (experimentos de sensações ou sensibilidade). O experimento precisa de condições ideais puras para ser repetido e a conclusão racional ser sempre a mesma.
Acaba no campo das ciências sociais ou humanas por usar retórica silogística e cria categorias de idéias resultados de experimentos que são apropriadas pelo agente conhecedor, fazendo dele uma autoridade sobre aquele tema, permitindo, pois, principalmente a transmissão do conhecimento por via do argumento de autoridade, de cunho dogmático. No campo específico da hermenêutica, busca uma essência também quanto ao significado da palavra ou do discurso, necessitando de método instrumental analítico-retórico.

Externalismo (conceito-chave: intersubjetividade)

O conhecimento depende de outras pessoas e a idéia não é dada pela mente, mas pelo uso da palavra numa determinada comunidade, em práticas coletivas. Aceita, por isto, as “impurezas” e trabalha com elas, considerando o conhecimento não como um dado da idéia, mas como fruto da relação interpessoal ou intersubjetiva, a qual, por sua vez, é produto da linguagem, vista não como instrumento, porém como uma prática lingüística de uso comum da palavra em uma comunidade específica.
É o uso comum da palavra enquanto prática comunitária que dá o significado da palavra, não havendo uma “essência”, fazendo com que a idéia seja também fruto do significado pragmático comum, incluindo assim a ideologia ou a pré-compreensão. Não trabalha com essência, mas em função da existência comum, de uma comunidade ou sociedade. A verdade nunca é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se considera o agente conhecedor como sujeito cuja mente filtra essências (sub jectum = o que jaz dentro), mas como um ser vivente ou existente na linguagem, que só existe na ação praticada em comunidade. Em virtude de considerar a vivência, o objeto do conhecimento é sempre aquilo que aparece (fenômeno), porém sem necessidade de ser internalizado na mente, logo, a experiência é sempre uma vivência retirada ou recolhida da comunidade à qual pertence o agente conhecedor.
A verdade é sempre relativa por sediar-se no agente conhecedor, mas o critério de verdade não é o mesmo agente ou sua mente e sim a convicção de verdade recolhida pelo agente da comunidade. A justificação da verdade depende das práticas sociais comuns e é sempre fornecida concretamente por modelos situacionais ou por situações, variando o critério da simples existência até a mais ampla comunicação. A situação funciona como modelo para uma analogia de ponderação (recolhimento e sopeso) e não como moldura subsuntiva. A razão (logos) não é instrumento de medida, mas de recolhimento, de colheita do significado do discurso num primeiro momento e de sopeso, ponderação de encontro do sentido diante da prática comum, num segundo momento.
O horizonte ou a atmosfera em que está inserido o agente é considerado em sua ideologia, crenças, conceitos, pré-conceitos e cosmovisão, que auxiliam no balanceamento do sentido, não precisando ser afastados. O significado do discurso coletivo já não tem uma essência, mas apenas sentido, por isto a atividade do agente conhecedor não é analítica, mas hermenêutica em si mesmo, dependendo ou do discurso pragmático ou da compreensão da atmosfera lingüística vivenciada. Seu instrumental é a analogia por ponderação do discurso (ana leguein), funcionando a dogmática apenas como elemento de partida, permitindo o constante questionamento do discurso e buscando sempre uma finalidade social-comunitária dentro da mesma comunidade. Não há retórica argumentativa, mas uma sintaxe argumentativa no sentido de estruturar e organizar hermenêutica ou pragmaticamente a polifonia do discurso. Há uma análise “poiética” do discurso a permitir ou a hermenêutica ou a pragmática lingüística.

Esquemas do conhecimento pela via da subjetividade
























OBS. Os dois esquemas de conhecimento advêm da modernidade filosófica e são de linha iluminista, assim diante da relação “sujeito X objeto” ambos privilegiam o internalismo ou internalidade (o conhecimento é dado pela idéia num movimento interno da razão, da mente ou da consciência e a linguagem é um instrumento, um meio também dado de expressar a idéia, a qual funciona como essência de tudo). Ambos trabalham com a subjetividade (o conhecimento está no sujeito), porém buscam uma verdade objetiva ou absoluta (conhecimento puro), não aceitando a verdade como relativa, precisando estabelecer um critério de “pureza” que forneça tal conhecimento puro e objetivo (mesmo a verdade estando no sujeito). Cada um possui o seu modo particular de estabelecer a objetividade. Em comum, ambos não aceitam as “impurezas” (precisam se livrar delas) qualquer que seja a denominação tal como ideologia, pré-compreensão, pré-juízos, horizontes, cosmovisão, rede de linguagem, comunicação intersubjetiva, relações culturais.

15 de julho de 2008

Espetacularização de prisões e polêmica no Judiciário

Estamos assistindo a uma crise no Judiciário iniciada com a decisão do Ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), de colocar em liberdade os acusados no procedimento criminal denominado "Operação Satiagraha".


O ministro Gilmar Mendes criticou na quarta-feira passada o que classificou como "um quadro de espetacularização das prisões" por parte da Polícia Federal ao se referir à citada Operação Satiagraha, que resultou nas prisões do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, do banqueiro Daniel Dantas e do empresário Naji Nahas, além de outros 17 acusados de crimes de lavagem de dinheiro, corrupção e formação de quadrilha. O ministro considerou esse procedimento da Polícia Federal "dificilmente compatível com o Estado de direito" e também condenou "o uso abusivo de algemas", acrescentando que "tudo isso terá que ser discutido".

Concedeu ainda em HC anteriormente impetrado liminarmente a liberdade ao referido banqueiro e outros 10 investigados, apontando a ausência absoluta de requisitos que permitissem a decretação da prisão temporária dos envolvidos. Um dia depois, o Juiz Federal responsável pelo caso, Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal, decretou então a prisão preventiva dos envolvidos. Com outro recurso, decidido pelo mesmo Ministro Gilmar Mendes, a prisão foi derrubada e concedida mais uma vez a liberdade para aguardar investigações e processo decorrentes.


A situação se agrava com manifesto dos juízes a favor da decisão de Sanctis e instaura-se um mal-estar entre as instâncias judiciais. Por um lado, a favor da opinião pública, decreta-se a prisão pensando-se alcançar a celeridade do procedimento. De outro, buscando preservar as estruturas do que se chama Estado de Direito, permite-se a liberdade de acusados de crimes graves. Qual a alternativa? Qual a função da prisão no processo? Leia mais

27 de junho de 2008

Mudanças no processo penal: cadastro dos mandados de prisão

Estamos acompanhando as iniciativas legislativas para modificação do Código de Processo Penal, com o suposto e esperançoso fundamento de “acelerar” o andamento de processos, como se isso fosse a solução definitiva para o problema da criminalidade. A última notícia divulgada é votação de um projeto de lei para criação de um cadastro nacional de mandados de prisão.
Leia mais

24 de junho de 2008

A missão do advogado criminalista

Em recente conversa com alguns alunos, diante da repercussão de casos criminais violentos, fui indagado sobre qual seria a missão do advogado criminalista. Gostaria de dividir a resposta com todos os que guardam a mesma inquietação.

O estudo do Direito Penal e o exercício do Processo Penal, mediante a prática da Defesa Criminal, são os ramos mais atraentes do Direito. São também os mais árduos, pois o operador do Direito, enquanto advogado criminalista, se confronta com um lado obscuro do ser humano; defronta-se com fatos que chocam a maioria das pessoas e da sociedade; enfrenta a ignorância, o desprezo, a revolta e o sentimento de vingança que muitos expressam; enfrenta a dor, a covardia, a solidão, a tentação, o desconforto e a incompreensão. Mesmo assim, é ele o profissional incumbido, pela mesma sociedade e por sua vocação pessoal, de revolver a alma do criminoso para nela encontrar a humanidade perdida, abandonada ou jamais conhecida.

Por outro lado, é também o operador do Direito, na prática da Defesa Criminal, que mais pode se aproximar da vítima desamparada e apaziguar sua indignação, reconfortar seu espírito perturbado, fazendo-o ver com mais clareza o funcionamento dos mecanismos jurisdicionais.

Se o advogado é indispensável à administração da justiça, o advogado criminalista é indispensável à realização da Justiça.

Os mecanismos estatais dotados de racionalidade burocrática intrínseca, por força de secular construção administrativa, são impessoais, frios e distantes. A investigação, o processo e a decisão, em que pese tentativa de legalidade e transparência, não são alcançados pelos olhos do cidadão comum, esteja ele na posição de vítima ou de acusado.

É ao advogado criminalista, no exercício da Defesa Criminal, que cabe traduzir ao indivíduo o funcionamento da máquina tecnocrática penal e, ao fazê-lo, humanizá-la, emprestar-lhe cores e sons para ser alcançada pela sensibilidade do homem comum, que não a conhece.

O advogado criminalista deve estar ciente de sua glorificadora, humanitária e digna missão. Seu compromisso maior é com a humanidade e com a Justiça. Sua luta é pelo reconhecimento da importância da pessoa humana, tão só pelo fato de estar viva, de ser vivente, sem qualquer vínculo à forma de vida que ela possua, sem qualquer modalidade de qualificação que se faça, seja racial, seja cultural, seja social, seja econômica.

Na Defesa Criminal, o advogado tem compromisso indireto, mediato com a sociedade, porque, enquanto esta examina e preocupa-se com o social, com o comum, o criminalista busca a pessoa, o indivíduo, o ser humano. E, nesta tarefa, ao lutar ao lado da individualidade humana em face da coletividade massificada, acaba por defender a sociedade contra aquilo que mais pode feri-la: a indiferença e a insensibilidade.

O limite da atuação do criminalista é a Ética, a qual não é meramente profissional ou deontológica, mas antes, a que reconhece o indivíduo como o ser que vive e que somente se realiza enquanto vivo e na relação com outros seres viventes. Sua ética é a da proteção da vida, porque a vida é o único caminho possível para a construção do ser; é a ética do individuo consciente da relação consigo e com o outro, numa prática que permita o desenvolvimento de ambos. É a Ética humanista.

Toda prática – nela se incluindo principalmente a profissional – precisa de uma teoria. Quando na prática a teoria é outra, isto significa que a teoria foi muito mal construída. A verdadeira teoria é aquela voltada para a prática e a prática efetiva é a embasada na teoria.

Muito se diz que o advogado deve estudar muito, contudo, pouco se sabe bem o porque. As leis, a jurisprudência, a oratória, até mesmo literatura e filosofia, tudo deve ser lido. Mas, para que? A leitura e o estudo somente têm sentido se a finalidade a ser atingida é a reflexão. É o pensar e não a exibicionista erudição que deve buscar o criminalista e o operador do Direito. A cultura, enfim, a atividade de ponderar e pesar o que se colhe dos livros. Somente assim, na leitura e no pensar, de acordo com a lição de Rui Barbosa em sua Oração aos Moços, poder-se-á lutar para se alcançar a Justiça e consegue-se formar o advogado criminalista.

18 de junho de 2008

GEDAIS - Objetivo e proposta

Foi criado no Departamento de Pós-Graduação em Direito da PUC/SP um novo grupo de pesquisas.

Trata-se do Grupo de Estudos em Direito, Análise, Informação e Sistemas - GEDAIS - sob a Coordenação Geral do Prof. Dr. Márcio Pugliesi.


Objetivo
O objetivo principal é pesquisar interdisciplinarmente o fenômeno jurídico dentro do campo do Direito amparado nas técnicas da pesquisa ou investigação operacional, envolvendo estudos de lógica algébrica, teoria dos jogos, teoria da informação e análise, teoria geral dos sistemas e inteligência artificial.


Proposta
Sabe-se que o século XXI trouxe novos desafios às ciências sociais em geral e em particular ao Direito. A chamada pós-modernidade, caracterizada pelo capitalismo tardio, traduzido pela passagem da sociedade de produção para a sociedade de conhecimento, passou a exigir postura diferenciada dos Operadores do Direito diante dos novos problemas que se apresentam, mormente na esfera dos estudos de Teoria Geral do Direito, a qual deve fornecer a necessária base epistemológica aos ramos dogmáticos da ciência jurídica.

As circunstâncias de hoje exigem considerarem-se outros modelos de abordagem ou de aproximação do fenômeno jurídico, passando-se a analisar mais amplamente certos elementos que a abordagem tradicional não levava em conta.

Pontos importantes como a questão do conflito como fator presente ao seio social, a questão da comunicação e o problema da intersubjetividade mediada pela linguagem, a questão da ação humana inserida num contexto situacional, as teorias de informação, análise de dados e de sistemas são exemplos que demonstram a necessidade de nova postura de estudos.

Com o fim de preparar melhor o Operador do Direito em suas pesquisas e adequá-lo mais especificamente ao desenvolvimento de seu trabalho diário, vê-se a necessidade de se realizarem estudos voltados ao Direito, mas que permitam um questionamento interdisciplinar entre este e as teorias da Filosofia, da Lógica algébrica e com as teorias de investigação operacional, dentre elas a teoria dos jogos, a teoria das decisões e a teoria geral dos sistemas.

Para tanto se funda o presente grupo de pesquisa com a missão de realizar este trabalho de difundir modelo mais complexo e interdisciplinar de abordagem do fenômeno jurídico dentro do ambiente do moderno Operador do Direito.

7 de junho de 2008

Criminalidade e educação

"A solução da criminalidade reside na educação" é expressão tão comum pode ser escutada nos mais diferentes e heterogêneos meios sociais. Interessante, porém, é questionar-se como seria tal educação, principalmente num país como o nosso em que o próprio sistema educacional se encontra enfrentando grave crise. Leia mais.

30 de maio de 2008

Alternativas para a hermenêutica jurídica

Tornou-se recorrente a afirmativa de que o direito passa por uma crise, gerada por fatores diversos, que reflete diretamente no resultado da atividade judiciária. Se verificarmos com cuidado, ao abrirmos os jornais, defrontamo-nos com decisões judiciais que às vezes atentam até mesmo contra o bom senso mais singelo.

27 de maio de 2008

Subjetividade e intersubjetividade: distinções e implicações hermenêuticas

Não pretendo abordar as novas reviravoltas do caso Isabella nesta semana, por isto, aproveito para responder neste espaço a uma dúvida de alguns colegas sobre a distinção entre abordagens filosóficas que consideram a subjetividade e a intersubjetividade, da qual decorrem implicações hermenêuticas importantes.

A idéia de subjetividade nasce de perspectiva advinda da modernidade filosófica, de linha iluminista de origem cartesiana. Estabelece relação “sujeito/objeto” na qual o conhecimento é dado pela idéia num movimento interno da razão, da mente ou da consciência e a linguagem é um instrumento, um meio também dado de expressar a idéia, a qual funciona como essência de tudo.

Busca uma verdade objetiva ou absoluta (conhecimento puro), a qual sempre existe, bastando encontrar sua essência ou substância essencial, por um critério racional específico. Cada pensador desta perspectiva possui o seu modo particular de estabelecer a objetividade, por meio de método próprio. Em comum, não aceitam as “impurezas” qualquer que seja a denominação tal como ideologia, pré-compreensão, pré-juízos, horizontes, cosmovisão, rede de linguagem, comunicação intersubjetiva, relações culturais.

A razão é instrumento de separação e medida de ordem lógica, trabalhando com comparações por sobreposição. A justificação racional da verdade é fornecida pela razão do sujeito que alcança a idéia da essência dentro de sua mente e a partir daquela faz associações, agregando conhecimentos. A realidade é um objeto do mundo que já existe independentemente do sujeito e este precisa observá-la para dela retirar a essência, configurando a experiência vivida como um experimento concreto (experimentos físicos) ou abstrato (experimentos de sensações ou sensibilidade). O experimento precisa de condições ideais puras para ser repetido e a conclusão racional ser sempre a mesma.

Acaba no campo das ciências sociais ou humanas por usar retórica silogística e cria categorias de idéias resultados de experimentos que são apropriadas pelo agente conhecedor, fazendo dele uma autoridade sobre aquele tema, permitindo, pois, principalmente a transmissão do conhecimento por via do argumento de autoridade, de cunho dogmático. No campo específico da hermenêutica, busca uma essência também quanto ao significado da palavra ou do discurso, necessitando de método instrumental analítico-retórico.

Já pela perspectiva da intersubjetividade, o conhecimento depende de outras pessoas e a idéia não é dada pela mente, mas pelo uso da palavra numa determinada comunidade, em práticas coletivas. Aceita, por isto, as “impurezas” e trabalha com elas, considerando o conhecimento não como um dado da idéia, mas como fruto da relação interpessoal ou intersubjetiva, a qual, por sua vez, é produto da linguagem, vista não como instrumento, porém como uma prática lingüística de uso comum. A verdade nunca é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se considera o agente conhecedor como sujeito (sub jectum = o que jaz dentro) cuja mente filtra essências, mas como um ser vivente ou existente na linguagem, que só existe na ação praticada em comunidade.

Em virtude de considerar a vivência, o objeto do conhecimento é sempre aquilo que aparece (fenômeno), porém sem necessidade de ser internalizado na mente, logo, a experiência é sempre uma vivência retirada ou recolhida da comunidade à qual pertence o agente conhecedor. A verdade é sempre relativa, mas o critério de verdade não é o agente ou sua mente e sim a convicção de verdade recolhida pelo agente dentro da comunidade.

A justificação da verdade depende das práticas sociais comuns e é sempre fornecida concretamente por modelos situacionais ou por situações, variando o critério da simples existência até a mais ampla comunicação. A situação funciona como modelo para uma analogia de ponderação (recolhimento e sopeso) e não como moldura. A razão não é instrumento de medida, mas de recolhimento, de colheita do significado do discurso num primeiro momento e de sopeso, ponderação de encontro do sentido diante da prática comum, num segundo momento.

O horizonte ou a atmosfera em que está inserido o agente é considerado em sua ideologia, crenças, conceitos, pré-conceitos e cosmovisão, que auxiliam no balanceamento do sentido, não precisando ser afastados. O significado do discurso coletivo já não tem uma essência, mas apenas sentido, por isto a atividade do agente conhecedor não é analítica, mas hermenêutica em si mesmo, dependendo ou do discurso pragmático ou da compreensão da atmosfera lingüística vivenciada. Seu instrumental é a analogia por ponderação do discurso, funcionando a dogmática apenas como elemento de partida, permitindo o constante questionamento do discurso e buscando sempre uma finalidade social-comunitária dentro da mesma comunidade. Não há retórica argumentativa, mas uma sintaxe argumentativa no sentido de estruturar e organizar hermenêutica ou pragmaticamente a polifonia do discurso. Há uma análise “poiética” (criativa) do discurso a permitir ou a hermenêutica ou a pragmática lingüística.

19 de maio de 2008

Sobre Alexandres, Anas Carolinas e Isabellas

Meu primeiro impulso como tema de retorno a este espaço foi escrever sobre o chamado Caso Isabella, o qual ainda movimenta a opinião pública produzindo sensível comoção na sociedade e que se encontra no limiar de seu desenvolvimento.

Há muito que se falar sobre ele, pois em virtude de buscar sua elucidação, a polícia civil apresentou um modo de trabalho conjugado com a polícia técnica que jamais havia acontecido no Brasil. Novas tecnologias de criminalística foram testadas e experimentadas; um procedimento mais arrojado, mais dinâmico, mais vigoroso foi utilizado, revolvendo-se técnicas operacionais de investigação já até esquecidas e adaptando-se outras recém-nascidas nos departamentos policiais do mundo dito desenvolvido. Dispositivos eletrônicos ultra modernos, reagentes químicos atualíssimos, exames laboratoriais minuciosos, tudo enfim foi empregado no trabalho de investigação criminal com o fim de se descobrir os hediondos criminosos que haviam assassinado uma menininha de cinco anos.

Tudo às vistas das máquinas fotográficas e câmeras de televisão, num modelo de divulgação que atingiu repercussão nacional e até mesmo internacional. A população foi e ainda está sendo alcançada pelos efeitos midiáticos do caso: “a polícia descobriu os criminosos, o pai e a madrasta”; “o promotor denunciou o casal e requereu sua prisão preventiva”; “os presos não aceitam dividir suas celas com tais execráveis bandidos”; são estas as frases que se ouve ao caminhar nas ruas, ao se pegar um táxi, ao se deslocar em locais públicos.

Institutos jurídicos penais foram trazidos à tona a fim de serem trabalhados e esmiuçados. Prisão temporária, inquérito, conveniência da investigação policial, relatório do delegado, denúncia, prisão preventiva, garantia da ordem pública são expressões que tomaram conta do discurso dos cidadãos nesses últimos dias. Definições, conceitos, opiniões, exposições e teses foram apresentadas e divulgadas. O processo penal brasileiro foi quase totalmente analisado. A figura do promotor foi destacada, a dos advogados de defesa, execrada. A prisão dos acusados trouxe o conforto inicial ao clamor do povo, respondendo à comoção de todos e restituindo a credibilidade à Justiça.

Com efeito, foi a clausura dos acusados que trouxe a catarse libertadora do anseio popular. A polícia descobriu por meio de provas os assassinos, o promotor manifestou seu parecer e o juiz determinou a prisão. O ciclo judicial para a opinião pública se completou. A Justiça foi restabelecida no país, um país de impunidade, um verdadeiro “paraíso penal”. Que não se permita aos astuciosos advogados com seus ardilosos recursos recuperar a liberdade dos acusados.

Pensei em escrever sobre tudo isto ou sobre um tema recortado do assunto. Desisti, porém, ao olhar ao redor e vislumbrar o rosto de outras crianças, cuja visão me trouxe à memória que, mesmo tendo legítimas preocupações, ainda não conseguimos um recurso adequado, independentemente da classe social a que pertençam, para permitir-lhes obter, ganhar ou adquirir um meio de vida melhor, mais harmonioso, mais construtivo e que as possibilitem, quando adultas, realizarem-se na plenitude de sua condição de seres humanos. Se tivéssemos alguma resposta, talvez no futuro pudéssemos não ter Alexandres, nem Anas Carolinas e talvez fosse possível salvarem-se algumas Isabellas.

7 de março de 2008

Pós-Modernidade, Direito e Hermenêutica


Introdução
A chamada Pós-Modernidade, embora o termo e sua conceituação não sejam unívocos em todos os autores, representa um conjunto de situações que agrupadas configuram a sociedade atual. A expressão qualifica uma espécie de estágio presente em que se encontra o mundo no século XXI.

Pós-Modernidade
Várias são as características básicas deste estágio, podendo-se considerar primeiro o processo socioeconômico, que passa a ser embasado num modelo de produção pós-industrial, o qual por sua vez apresenta-se como a passagem da economia de produção para a de informação. O produto hoje não é aquilo com que a indústria ou o comércio trabalham mais diretamente, mas sim o significado que tal produto possui dentro e diante do mercado, não tendo mais valor o produto em si, porém ele e mais todas as circunstâncias que o envolvem, recebendo isto a nomenclatura de marca. É o que o produto representa nesta coletividade de mercado que lhe fornece sua marca, ao mesmo tempo em que a indústria também trabalha para além da produção no sentido de criar e estabelecer a marca do produto. O consumo, assim, não obedece mais rigidamente à conhecida e citada lei da oferta e procura, mas antes passa a ser provocado como conteúdo também do significado da marca.

Aqui, o consumo vem a ter atuação importante, pois se torna o fim social mais destacado dentre outros, podendo ser considerada a aquisição de certos bens ou a posse ou propriedade de certos bens, equivalentes a valores, como critério de realização, status e posição na sociedade. O consumo acaba por ser o meio de qualificação do cidadão na sociedade e a própria vida deste cidadão é considerada digna se ele reúne em torno de si a possibilidade de ter bens considerados mínimos para sua existência individual e comum.

Desta forma, o cidadão que trabalha, um trabalhador tem uma vida digna ou possui dignidade humana se conseguir obter um conteúdo mínimo de bens que garantam sua subsistência. Para tanto, seu trabalho deverá como contraprestação ser avaliado e expresso num valor monetário que permita tal aquisição. Estabelece-se, via de conseqüência, um salário mínimo que o trabalhador deva receber como garantia de sua dignidade. E o trabalhador não adquire mais mercadorias, mas o significado, a marca de possuir, usar ou fruir daquele produto.

Melhores cidadãos não são mais aqueles que exercem melhor a cidadania em si, mas os que possuem os produtos de melhor significado ou melhor marca.

Como o que gera o significado não é mais o produto em si, não há qualquer necessidade do produto ser efetivamente real, basta que seja virtual. Vale dizer, mesmo que o produto não seja palpável ou concreto, se ele possuir marca, terá valor de mercado, possuindo seu significado. Isto implica que coisas irreais como cultura, ensino, bem-estar, direitos e até mesmo cidadania possam ser consideradas e vendidas como produto.

Para melhor explicar, deve-se apontar uma outra característica da Pós-Modernidade, que é chamada pelos autores da questão do sujeito. Ao se falar na questão do sujeito ou no princípio da subjetividade, deve-se entender como se deu a modificação do conceito de indivíduo.

Normalmente, utilizam-se as expressões sujeito, indivíduo, cidadão, pessoa, como sinônimos todos de ser humano, mas para desvendar-se o problema, há que se considerar as expressões mais cautelosamente.

Aqui se fará uma distinção primeira entre indivíduo e sujeito. As demais expressões serão acompanhadas das necessárias e decorrentes explicitações de acordo com o desenvolvimento do texto.

O ser humano vem sendo visualizado, compreendido, entendido, estudado e conceituado de modo diferente ao longo da história do pensamento, da filosofia e do direito. Indivíduo é o ser humano que se percebe em sua totalidade, numa compreensão integral de si mesmo, como uma unidade completa, mas que, para viver necessita e deseja conviver, ou seja, existir em comunidade.

A expressão sujeito indica um dos modos de visão sobre e do ser humano, estabelecida a partir do século XVII com Descartes, pensador francês, que definiu o ser humano como um ser pensante, ou melhor, como algo que pensa. É dele a conhecida expressão "penso, logo existo", significando sinteticamente que a característica básica do ser humano é o pensar. A atividade do pensamento é realizada pela razão, logo o ser humano é o ser racional, ou seja, aquele que usa a razão ou que dela pode dispor independente de qualquer outra característica ou qualidade. Como a razão se situa na mente, o ser humano divide-se em mente e corpo e também em espírito e físico, em razão e emoção. Assim, o sujeito é fundado numa bidimensionalidade dada por uma estrutura racional que se opõe a uma estrutura sentimental, esta fornecida pelas sensações do corpo e aquela pelos pensamentos da mente.

Embora tenha se oposto a Descartes, o filósofo alemão Kant, no século XVIII, tentando fugir do rígido esquema dual do sujeito, acabou por permitir a amplitude do conceito, ao estabelecer a razão como elemento transcendental de conhecimento, ou seja, como único requisito para o alcance de compreensão de todas as coisas.

Em seguida, mas não em seqüência, ocorre o ápice da noção de sujeito, já no início do século XIX, com outro filósofo alemão chamado Hegel. Ao fazer a crítica de seu antecessor, sugerindo modificações inclusive no modo como a razão atua e o pensamento se realiza, Hegel consegue demonstrar que a noção de sujeito é a única possível para o ser humano e para a pessoa, pois só o sujeito, dotado de razão, que desta se utiliza num determinado modo dialético, num complexo processo de sensação-objetivação-negação-retenção-memorização-conceituação – normalmente reduzido à idéia tese-antitese-síntese – é que tem a possibilidade de conhecer todas as coisas, inclusive a si mesmo. Assim, "todo real é racional e todo racional é real". Ou seja, toda a realidade se efetiva ou se realiza no próprio sujeito, por meio de um conceito, que enxerga a realidade dos dados brutos como entes em si mesmos. Cada sujeito é dono de sua verdade e de sua realidade, as quais se formam como entes, ou seja, coisas em si. Todo real é configurado como algo em si, num ente, produzido em um conceito concebido pelo sujeito. Como a verdade tem que ser única, mas todos a tem em si mesmos, tudo passa a ser resolvido pelo critério de uma maioria racional.

Esta compreensão do sujeito aliada a outros fatores facilita muito o desenvolvimento de um modelo econômico capitalista que, mesmo com a oposição socialista baseada num inverso modelo hegeliano (viciado num erro de entendimento da amplitude da base inicial que foi invertida), termina por se estender por todo o mundo, num processo de adaptação por retro-alimentação e autobalanceamento.

Com efeito, se a verdade está no sujeito, a certeza está no sujeito, a realidade está no sujeito, a ética está no sujeito, a vida comum do sujeito é dada pela somatória da maioria dos sujeitos, que se individualizam, mas que se perdem como indivíduos, ou seja, que se perdem de si mesmos como seres integrais numa totalidade ou numa unidade. Há o individualismo, porém perde-se a individualidade, a unidade. Obtém-se uma sociedade de maioria dos sujeitos e perde-se a comunidade da unidade dos indivíduos.

O ser humano passa a ser um sujeito do ter em sociedade e deixa de ser um indivíduo a existir em comunidade. O comum é estabelecido pelo consumo e não mais por projetos ou ideais realmente comuns.

Como hoje as coisas em si podem ser virtuais, o sujeito também o pode ser, deixando inclusive de ser sujeito e passando a ser um papel, ou seja, um feixe de funções dentro da sociedade, pulverizando-se em sua racionalidade, que então é considerada apenas instrumentalmente. O sujeito como papel de funções é um significado, o significado da função que ele realiza, pois o único elemento necessário é sua razão considerada como instrumento pleno de sua capacidade. Como todos a têm, os que a puderem utilizar com o mesmo significado diante de determinada função a caracterizar um papel, podem exercer este papel, sendo enfim todos intercambiáveis. Isto quer dizer que um sujeito que por força de sua racionalidade desenvolva habilidade técnica, qualquer que seja ela, pode ser substituído por outro sujeito que tenha desenvolvido semelhante habilidade instrumental. Como o que faz o sujeito é o ter e não mais o ser, todos aqueles que desenvolvem a mesma técnica ou todos aqueles que possuem determinado conjunto de bens se consideram pertencentes à mesma classe respectivamente profissional ou social. Logo, todos perdem sua condição de integrarem uma classe por ideais, aspirações, desejos ou projetos. A situação se agrava ainda mais quando o consumo se torna conspícuo, ou seja, induzido ao extremo, produzindo inclusive a mesma categoria de desejos para todas as pessoas e dividindo estes desejos em setores para diferentes sujeitos-papéis.

O sujeito que pertencer a certa classe – não por sonhos comuns – mas por desejos comuns e tiver possibilidade de realizar a atividade de consumo ou aquisição dos bens dirigidos a esta classe é inserido na mesma classe, passando a ela pertencer, permitindo a retro-alimentação do procedimento.

Neste mecanismo, o sujeito é desconstruído em papéis, pulverizando-se em funções instrumentais que são recompensadas pelo consumo incondicional, provocado pela necessidade produzida de adquirir bens a fim de se realizar, pertencendo a uma classe, cuja característica essencial é possuir, em conformidade com o conjunto de bens exigidos, um determinado significado para a sociedade. As classes também se tornam produtos de marca, pois os sujeitos que a integram não apresentam um ser comum, mas um conjunto de marcas em comum.

O sujeito desconstruído da pós-modernidade é enfim uma marca dada por um papel, representado por uma função técnica de racionalidade instrumental, que reúne um conjunto de bens, que por sua vez são marcas que o posicionam numa classe a qual também possui seu significado e dá significado ao sujeito. Eis o processo de formação da consciência de classe da pós-modernidade a originar o sistema social.

Este processo se realiza num dado espaço-tempo que pode ser denominado de "subsistema civilidade", posto que ocorre em determinada área geográfica, por um lapso de tempo, com um dado grupo de pessoas, não importando o tamanho, a duração do tempo ou o número de pessoas (salvo se o estudo pretender analisar específico subsistema civilidade). Normalmente o espaço examinado é o da "urbes", ou seja, o da cidade em que o sujeito realiza suas atividades cotidianas, pois os demais espaços geopolíticos distanciam-se do sujeito uma vez que reconhecidamente ficcionais.

No processo social, tendo em vista a presença da noção de significado, principalmente como visto na pós-modernidade, o conjunto destes significados reunidos em ideais, valores, ou seja, aqueles bens de caráter mais etéreo ou abstrato, todos hoje derivados da noção de consumo, vão se reunir em projetos que pertencerão a uma esfera social que pode ser denominada "subsistema cultura".

A dinâmica social, tendo por ator o sujeito desconstruído, irá se realizar como ininterrupto produto dialético – não no sentido marxista da palavra – mas como uma relação de confronto constante entre os subsistemas "civilidade" e "cultura", relação esta dialética porque ambos os subsistemas se retro-alimentam e se modificam a si mesmos enquanto se relacionam. Cada classe pós-moderna a que pertence um conjunto de sujeitos desconstruídos mantém entre si subsistemas civilidade e cultura, que de sua somatória conjunta, não em adição simples, mas também numa soma dialética, produzem e mantém em funcionamento o sistema social, todo ele baseado na noção do consumo, todo ele formado de sujeitos definidos pelo ter e não pelo ser, todo ele construído em cima de marcas e não sobre a solidez de verdadeiros ideais ou projetos. Eis aí a dinâmica da pós-modernidade.

Direito e Pós-Modernidade
Diante deste quadro, o direito consegue realizar ou proteger a humanidade do ser humano ou a dignidade da pessoa humana? Para se responder, volte-se ao momento em que se construiu a noção de sujeito, ou seja, volte-se para o embrião do denominado Estado de Direito.

Num resumo bastante apertado, sabe-se que a noção de comunidade em que se fundava na Idade Média a convivência social do ser humano era fornecida pelas bases religiosas comuns. Deitavam na profundidade do sentimento religioso as concepções de mundo que permitiam os pressupostos da vida em sociedade.

Com a mudança de perspectiva na compreensão do ser humano, com a cisão entre Estado e religião, com o advento da noção de sujeito como senhor em plenitude de sua razão, esta única essência exigida passou a ser o elo comum integrador da sociedade. Fundada na razão, a comunidade passa a ser Estado, por meio de um contrato social e este passa a ser o princípio de integração do convívio comunitário. Um instrumento racional toma lugar de um sentimento difuso e comum, funcionando como imperativo categorial de união da sociedade.

O movimento em direção ao Estado da razão é impulsionado pela Revolução Francesa, cujos frutos são a base do direito atual, com seus conteúdos respectivos do Estado constitucional, dos direitos individuais, das garantias de igualdade e liberdade, com a divisão de poderes e com o voto em assembléia pelos representantes do povo.

Não se ousa pretender reduzir a importância da revolução burguesa jamais. Apenas tenta-se situar que a mudança estrutural da sociedade na época causou profundas modificações no modelo de compreensão do direito e no modo de com ele trabalhar.

O direito moderno, de conotação burguesa, reproduziu dentro de seu espaço de existência e finalidade a dinâmica que a sociedade de então exigia e seu legado foi transmitido para a pós-modernidade. Sua característica é constituir-se de base racional, com oposição entre correntes positivistas (a lei como eixo fundamental) e naturalistas (o contrato social ou então valores universais religiosos ou racionais como fundamento), visando a manutenção do sistema socioeconômico nascente da pós-revolução, de cunho capitalista.

É o direito considerado também um ente em si, pois reúne conteúdos autônomos de existência, que se dividem basicamente em direitos objetivos, aqueles preceitos fornecidos pela lei e direitos subjetivos, as decorrentes faculdades ou condições de atuação permitidas ou fornecidas pelas prescrições objetivas, ambos mantendo relação entre si, porém como entes ou coisas que se opõem.

Fala-se em humanismo diante do fato de terem sido estabelecidas garantias individuais ou fundamentais da pessoa em face do novo modelo de Estado que surgia. Tinha-se um Estado de Direito, que existia somente dentro dos limites estabelecidos constitucionalmente, representada tal limitação pela expressão dos postulados das citadas garantias. A liberdade era o valor fundamental para o ser humano.

Nos fins do século XIX e início do século XX, as certezas do Estado constitucional desmoronaram. Movimentos, que em síntese se resume aqui pela expressão correntes socialistas, lutavam pelo valor da igualdade, clamavam por uma consciência social que não permitisse a instrumentalização de algumas pessoas por outras, principalmente a dos assalariados por aqueles que retinham o capital ou os meios de produção. Nasce a era dos direitos sociais para além dos direitos individuais, ou melhor, nasce uma nova geração de direitos individuais.

As duas Grandes Guerras deitam por terra as ilusões de todos. Como o ser humano, racional por excelência, dotado de mecanismo tão perfeito como a razão, destinado a viver em igualdade e liberdade, iluminado pela técnica da mais elaborada ciência poderia cair em luta armada?Simplesmente caiu, ou melhor, complexamente caiu, pois o mundo e o ser humano não se configuravam como queriam os iluministas na inocência de seu pensamento, respectivamente, nem de um lugar onde só ocorreria o progresso dado pelo esclarecimento, nem de um animal dotado da plena razão destinado a viver em paz perpétua.

Descobriu-se que o mundo era um lugar complexo e que viver era muito perigoso. A Guerra Fria provou isto ao dividir o mundo em dois eixos verticais, ao lançar por terra todos os valores sonhados como eternos nos séculos anteriores.

A realidade gélida e crua bateu á porta. E o direito? Houve reação?

Sim, surgiram os direitos humanos no pós-guerra em nova tentativa de estabilizar conflitos entre pessoas e organizações estatais autoritárias. A lei era a garantia máxima do ser humano, porque era a medida de atuação para o governo e o Estado.

Mas o Direito era apenas a lei como queriam os positivistas ou era algo mais, dividindo-se estes últimos em correntes lastreadas em valores absolutos e outros em anseios sociais? Na primeira metade do século XX venceram os da primeira ala; na segunda começaram uma reviravolta os da segunda em conflito entre si mesmos.

Hoje, já adentrado o século XXI, descortinada a pós-modernidade, vivencia-se largamente o chamado "pós-positivismo" (de escolas diversas, também reunidas sob a denominação de "neoconstitucionalismo"). A lei é soberana ainda, porém a visão pós-positivista elege algumas características que devem fazer parte da análise do direito. São elas, em resumo: a) modelo constitucional prescritivo de lei para norma, ampliando-se o conceito desta; b) consideração de princípios como integrantes da norma em conjunto com preceitos legais ou regras; c) eleição de técnica interpretativa diferenciada da clássica pelo uso do balanceamento de princípios; d) destaque de tarefas pragmáticas e de integração à Teoria do Direito e à Jurisprudência.

Em síntese, verificou-se que o Direito também tem seu significado. Ele pode ser construído como uma marca de um produto qualquer e defender bandeiras que tal marca apresente como corretas ou politicamente corretas. Ou talvez não – diz-se talvez, pois alguns autores informam que os problemas da pós-modernidade (se ela realmente existir) podem ser identificados, mas não combatidos.

Tenta-se uma resposta, fundada não mais no retorno ao direito burguês ou a nova modalidade de direito social, ou ainda, a uma ingênua postura pós-positivista de verificar como se congrega teoria do direito com interpretação moral da constituição. Não se tentará demonstrar como valores convivem com normas porque tanto os valores como as normas são todos construídos, como se viu, pela dinâmica da sociedade pós-moderna. Tentar-se-á ler a realidade em que se vive, pois se tudo tem um significado, deve haver um modo de leitura que permita a convivência numa comunidade. Em outras palavras: tentar-se-á dentro do campo do direito um retorno à noção de indivíduo que tenha consciência real de cidadania para viver numa comunidade, para além de Têmis e Leviatã. Tentar-se-á um modelo que considere a miséria do humano, a presença do conflito, a complexidade da sociedade moderna, a multidimensionalidade do existir, os horizontes de compreensão dos indivíduos, um modelo enfim que sobreviva entre Nêmesis e Hades.

Pós-Modernidade, Direito e Hermenêutica
Baseado no pensamento de Heidegger, Gadamer, Flusser e na leitura de Márcio Pugliesi (“Por uma Teoria do Direito: aspectos micro-sistêmicos”,ed. RCS, 2005), que apresenta uma investigação sobre a possibilidade de estabelecer estratégias para a compreensão e decisão de determinado conflito, pode-se construir um método de interpretação e aplicação da norma jurídica que venha a superar os problemas apresentados pela doutrina tradicional.

Normalmente o método desta doutrina tradicional tem caráter dogmático-positivo, seguindo passos instrumentais de trabalho. Por isto, muitas vezes, a aplicação da lei acaba por se distanciar de um resultado social adequado, o que se converte numa sensação de injustiça, quando, na verdade, o aplicador da norma realizou uma atividade técnica em sua plenitude. O ponto do problema está na técnica empregada como meio de aplicação da norma que impede o operador de analisar a totalidade do fato envolvido no conflito.

De acordo com a prática judicial tradicional, a qual utiliza o chamado "método subsuntivo", não se exige a compreensão do fato como situação complexa, mas ele é isolado num desenho que deve ser emoldurado pela lei. Num primeiro momento, mediante o emprego de procedimento dedutivo-indutivo, de caráter lógico-formal, extrai-se um significado da norma que, transformado em coisa em si ou ente, justificada tal operação na idéia de suposta vontade da lei ou vontade do legislador, passa a funcionar como uma espécie de moldura à qual deve ser o fato ajustado. O erro principal, contudo, está em reduzir a aplicação da lei ao caso concreto, por um modelo de subsunção, considerando tanto a própria lei quanto o caso como "entes" – como um “sido” – como um acontecimento estático.

Para se evitar isto, na busca de uma alternativa lastreada nos autores acima, o operador do Direito tem que ler a realidade como um todo complexo, como um sistema em homeostase, no qual o problema jurídico dado caracteriza-se como conflito – o que já é considerado pela doutrina tradicional em parte, ao falar em conflito de interesses. Tal conflito tem de ser visto como um fenômeno, algo que surge em movimento vivo dentro do sistema social homeostático, provocando um desequilíbrio que precisa ser encerrado, decidido, solucionado.

Neste novo modelo proposto, que pode ser denominado de “hermenêutica da compreensão”, para ler o caso concreto o operador deve considerar uma função triádica cujos elementos são apresentados e explicados na forma seguinte:
S = situação (atores num espaço-tempo)
AEP = agentes externos de pressão
FAD = fatores atuantes determinados

Em S considerar:
a) Espaço-tempo como relação constante
b) Atores diretos envolvidos no conflito
c) Lugar específico do conflito
d) Tempo específico do conflito
e) Objeto real do conflito, ou seja, elemento derivado do projeto inicial de cada ator e concretizado como interesse respectivo no conflito.
Em AEP considerar
a) Poder estruturado no governo
b) Grupos organizados de pressão direta
c) Mídia e respectiva repercussão
d) Grau de influência do que se pode chamar "inconsciente coletivo popular" sobre a situação conflitiva
Em FAD considerar
a) Textos legais frutos de um determinado sistema político-jurídico, presentes num dado sistema constitucional, representado por princípios diretivos de ação, por preceitos constitucionais estabelecidos e por regras infraconstitucionais. Os textos legais funcionam como projetos pré-estabelecidos para o horizonte da ação concreta.
b) Decisões precedentes que irão funcionar como termômetro de consciência dos julgadores, principalmente os do tribunal máximo, que é o mais político de todos.

Hermenêutica da Compreensão: a leitura da norma
Não basta, como na plataforma subsuntiva clássica, apenas ler a lei e adequá-la a constituição ou ler os princípios, partindo da dignidade da pessoa humana e encaixá-los na lei, usando o significado obtido como um ente que serve de moldura ao caso concreto. Também não é suficiente o uso já comum de uma analogia retórica, cuja função é a mesma do argumento de autoridade.

É preciso ler o texto legal em seu contexto completo e complexo, ou seja, efetuar uma leitura com base na situação (S), recolhendo, retirando desta todos os componentes fáticos possíveis e ponderá-los num confronto direto com o texto legal, considerado este como projeto para uma dinâmica de redução de complexidades, ou seja, como eixo orientador da ação concreta.

O operador tem, em primeiro lugar que ler a realidade expressa pela situação. Em seguida, ponderada esta, deve concretizar o texto numa norma que decida (corte) especificamente o conflito. Na leitura do texto, o operador deve recolher todo o conteúdo semântico presente no próprio texto como projeto “escrito” do grupo social. Deve buscar a finalidade ou a proposta mais ampla do texto legal, inserido na cultura que o produziu. De posse desse conteúdo semântico, o operador estabelecerá uma relação de ponderação com a situação, sopesando ainda os agentes externos de pressão (AEP).

Finalizando seu trabalho, deverá expressar sua decisão de modo a criar uma norma concretizada, ou seja, um preceito ou regra que, contendo toda a significação da situação, seja aplicável àquele caso como concreto em si. Em termos heideggerianos, deve buscar o sentido do ser do conflito como uma realidade (a desequilibrar a homeostase sistêmica) e fazer de sua decisão o corte necessário a modalizar o conflito de forma que este se torne um ente, um modo de ser dado, “sido”, cuja finalidade específica e necessária será permitir a retomada da homeostase social.

Pelo modelo clássico, o conflito é um dado temporal e o significado da norma, extraído subsuntivamente é um ente atemporal e por isto pode ser aplicado a qualquer conflito semelhante, numa analogia superficial, como uma moldura a encerrar o caso, que em sua realidade efetiva acaba por vezes a não ser resolvido.

No modelo proposto, o conflito é considerado atemporal, logo não um ente, mas um campo de possibilidades amplificado, cuja presença e permanência provocam um indesejado desequilíbrio sistêmico em face do aumento dessa mesma amplitude de possibilidades (um caos estruturado de cálculo mais aberto). A decisão que corta o conflito permite a passagem deste para o temporal, uma vez que reduz toda sua complexidade pela norma concretizada num determinado modo de ser, num ente (sido) que permite a retomada do equilíbrio homeostático social. Para reduzir o conflito a um modo de ser efetivo, há que se descobrir o sentido real de seu ser e estabelecer normativamente um definido modo de ser, eis a proposta da “hermenêutica da compreensão”.

A decisão mais formalmente técnica-dogmática é a que considera FAD e S em relação direta. A mais política, FAD e AEP. Finalmente, a mais ponderada, a obter efetiva homeostase da dinâmica social é a resultante que se encontra num perfeito ponto de equilíbrio entre FAD, AEP e S. Num resumo de palavras a fim de conceituar os componentes de trabalho, seguindo exemplo heideggeriano de um retorno à tradição ou “genealogia” dos termos, o operador do direito deve agir com dois elementos de ação, inspirados em duas expressões gregas: logos e fronesis.

23 de fevereiro de 2008

Os “Tribunais” do PCC

Investigações de policiais paulistas por meio de escutas demonstraram que o denominado Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa nascida da organização dos detentos em presídios em meados da década de 1990, já vem alcançando escala de atuação ainda mais estruturada.

Tendo começado por resolver questões envolvendo disputas entre presos nas cadeias no interior do Estado, a facção passa agora a decidir situações de conflito na capital, assumindo papel que deveria ser efetuado pela Polícia e pelo Judiciário, criando assim, a figura de tribunais paralelos. A pior e mais profunda gravidade é que já se têm notícias de julgamentos de casos cujas partes não são pessoas ligadas à facção, conforme dados policiais divulgados pela mídia.

A situação é insólita, absurda, possui efeitos de extrema seriedade e é, sem dúvida, trágica. Contudo, infelizmente, não é totalmente inesperada. Havia anúncios de que esse poder paralelo surgiria, diante da incontestável crise do sistema prisional e da montagem de uma estrutura organizada pelos presos, cuja primeira ação orquestrada a cidade de São Paulo, há dois anos atrás, testemunhou. Mesmo assim, em todas as oportunidades em que é instado a fazê-lo, o governo nega a existência de qualquer organismo criminoso de tal natureza, como se a negação da realidade – gesto comum na política brasileira e na vivência dos pusilânimes – tivesse o condão de produzir seu desaparecimento. Não admitir o real efetivo é simplesmente adiar suas – nefastas, como no caso – conseqüências.

O sistema prisional está em crise! O poder judiciário está em crise! O primeiro não pune nem ressocializa e o segundo não decide!

Se houvesse pelo menos a vaga idéia de punição, nenhum preso teria a coragem de revolver sequer tentativas com fins de se unir como grupo social. A teoria de que a pena pode punir o sujeito como exemplo de conduta ou como mal pelo crime praticado, desenvolvida pelo Iluminismo no século XVIII, já nasceu furada para a figura do Estado de Direito de então e, hoje, diante da sociedade do século XXI, com a tal propagada pós-modernidade, com a não compreensão do verdadeiro sentido da expressão direitos humanos – cujo conceito é muito mais profundo do que pregam alguns de seus pretensos defensores –, não poderia nem mesmo ser mencionada como finalidade da sanção penal.

A sociedade para sobreviver em face do estágio da criminalidade atual precisa e urge compreender que a chamada ressocialização não é alegre bandeira de uma vanguarda humanista – embora haja inegável e infelizmente certa ala prazenteira, nascida no Brasil no período pós-ditatorial, que confunde autoritarismo com autoridade, democracia com irresponsabilidade, pré-compreensão com preconceito e criminalidade com exclusão.

O criminoso hoje não é um excluído. Ele é um incluído num outro sistema, um subsistema do sistema maior que é a sociedade, com regras e normas de conduta próprias, além de práticas peculiarmente respectivas. Ou seja, a criminalidade atual possui uma dinâmica social dela mesma, derivada daquela pertencente ao âmbito maior da sociedade. Se isto não for compreendido, jamais se conseguirá dar um passo a qualquer solução do problema. Ressocializar é bem diferente da denominada atitude de agregar minorias, todas no mesmo caldeirão, tendo por fim educar o pobre criminoso.

Na verdade, ressocializar é técnica a permitir migrar o preso do subsistema a que pertence para o subsistema chamado normal. É no subsistema normal que estão os excluídos que não pertencem ao subsistema criminoso. São estes excluídos que agora estão procurando os órgãos de jurisdição do PCC para satisfação de conflitos. Tais tribunais do PCC nada mais são do que a concretização objetiva da acima mencionada dinâmica social, que se estrutura em dois níveis, um de esfera mais abstrata e outro de esfera mais concreta. Lamentavelmente para alguns verdadeiramente excluídos são a única real Justiça que conhecem.

14 de janeiro de 2008

Ano Novo e consciência de cidadania

Inicia-se mais um ano e novos projetos pessoais idealizados passam a ser trabalhados a fim de se tornarem realidade. Uma das dimensões de nossos projetos, porém, não pode ser esquecida: é a dimensão da cidadania. Ela exige de nós que tenhamos a consciência de incluirmos em nossas propostas aquelas realizações que atendam ao chamado bem comum.

Isto significa que devemos nos lembrar da importância de nossa participação na vida social, a qual pode ser efetivada de maneiras diversas, por exemplo: com a verificação dos resultados obtidos por aqueles que elegemos a algum cargo político; com o acompanhamento dos trabalhos da mídia, filtrando as informações relevantes; com a participação em alguma comunidade do bairro em que moramos, que possuam objetivos sociais concretos e verdadeiros; e principalmente estando atentos àquilo que nos choca mais diretamente na vida da cidade e nos permite criar ideais de luta comunitária.

Não estou defendendo a incursão leviana em bandeiras prontas, algumas das quais bastante falsas. Falo daquilo que diz respeito efetivamente ao nosso espírito, que nos provoca e nos motiva a lutar por nós mesmos e pelo outro. As ações em si não precisam ser grandiosas, precisam ser eficazes, mesmo configurando condutas menores, desprovidas de glamour, arroubo ou atração.

Importante mesmo é termos ciência dos problemas que nos cercam e, enquanto nos realizamos com a concretização de nossos projetos, não esquecermos de que só podemos realizá-los no espaço onde vivemos. Sem este espaço e sem a respectiva convivência com outros não há campo para desejos, sonhos ou projetos.