Haveria alguma relação entre a poesia concreta e a concreção da norma jurídica? Que lições Haroldo de Campos, que foi advogado (formado pela USP na turma de 1952) além de tradutor e poeta, pode trazer ao operador do Direito?
Seu livro de poemas “A Educação dos Cinco Sentidos” pode responder. Originalmente lançado em 1985, vem à luz novamente, completados dez anos de sua morte, pela Iluminuras, com acréscimos importantes: textos de K. David Jackson, Andrés Robaina e João Ubaldo Ribeiro, que auxiliam o leitor na compreensão da obra. Acompanha ainda CD com leituras de Haroldo e Christopher Middleton.
“A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história universal até agora”, epígrafe retirada dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx, traz a temática que acompanha o poeta. Já no primeiro poema, homônimo ao título, pode ser notada a busca pelo encontro entre “poiesis” e “praxis”, entre poetar e fazer: “linguagem se faz de ar/ e corda vocal/ (...) trabalho diáfano mas que/ se faz (perfaz) com os cinco/ sentidos”.
A palavra alemã “Bildung” no original do texto marxiano, traduzida aqui por educação, significa ainda “formação”, referindo-se ao conceito de cultura, segundo Gadamer, como modo especificamente humano de aprimoramento. E aptidões humanas são aprimoradas ou aperfeiçoadas na relação intrínseca entre todos os sentidos. O trabalho desta relação integrada compõe um sexto sentido, de caráter eminentemente poético, em que formação é processo e resultado.
Ainda conforme Gadamer, formação remete à ideia de imagem, em alemão “Bild”, contida em “Bildung” e representada por “forma” na referida palavra “formação”. Poesia é, assim, processo-resultado traduzido em imagem, como complexo mecanismo de representação que irá formar ou constituir a visão de mundo (“Weltanschauung”), o universo de conceitos prévios (pré-conceitos – pré-compreensão, “Vorverständnis”, em alemão), colaborando com a formação do indivíduo, não apenas pelo trabalho da mente, mas de todos os cinco sentidos.
Objeto de trabalho do poema é a linguagem, não como ferramenta, mas no sentido de forma, ideia (“eidos”), aquele princípio formador e ambiente facultador de todo labor poético. A linguagem não é simples meio, mas a matéria com a qual se lida e o próprio ambiente em que se lida – alguns autores nacionais não percebem isso, mesmo dizendo serem seguidores de correntes da filosofia da linguagem ou da semiótica jurídica.
Linguagem é forma e matéria! É espaço de trabalho e objeto trabalhado, mas um objeto intrínseco ao próprio agente. Como diz Haroldo, na “Ode (Explícita) em Defesa da Poesia no Dia de São Lukács” sobre a linguagem: “porque tua propriedade é a forma/ (como queria marx)/ e porque não distingues/ o dançarino da dança”. Não há distinção entre o fazer-dançar, entre o ator-dançar e o ver-dançar. Agente, processo e resultado são um só.
Dentro do universo da linguagem, na relação forma-matéria é efetivada a imagem poética, como queria Haroldo, superando o concretismo estrito do início de seu trabalho pela concreção mais ampla e profunda da materialidade dos signos linguísticos. Para tanto, a regra haroldiana de “Minima Moralia”: “já fiz de tudo com as palavras/ agora eu quero fazer de nada”. E o poeta, como seu leitor, mergulham no inefável.
No direito, o mergulho é mais problemático, no sentido de ter de se materializar numa decisão sobre a vida humana ou um conflito. Obviamente, a poesia, enquanto fazer, é muito mais radical, porque ela revolve camadas mais profundas do espírito. Todavia, apesar de habitar universo intersubjetivo por força da linguagem, a poesia não agride seu receptor, pois seu efeito performático é de adesão; a resposta advém de uma provocação à qual se adere.
No campo jurídico, não há adesão. A performance do receptor é produzida por mecanismo de comando, não ditado propriamente pela força dispositiva da norma, mas pelo universo semântico que a envolve. Ou seja, pelo espaço de pré-compreensão que compõe o horizonte de entendimento das normas.
A poesia concreta pode apontar para esse mecanismo de revelar o universo de pré-compreensão das realidades dos signos linguísticos, pois ela trabalha com o máximo estiramento desse campo de materialidade significante. Ao operador do Direito, lendo, estudando e provando dessa dimensão, abre-se a possibilidade de compreender mais profundamente as forças dinâmicas que se embatem na construção da realidade e são traduzidas pelo e no discurso normativo.
Seria um meio de superar o entendimento do Direito para além dos fundamentos contratualistas e positivistas, lastreados numa suposta evolução, gerações ou dimensões de direitos subjetivos.
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Publicado originalmente no portalÚltima Instância
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Resenha de A Educação dos Cinco Sentidos de Haroldo de Campos publicada no Guia Livros da Folha de São Paulo |