Por Dentro da Lei

Por Dentro da Lei

7 de março de 2008

Pós-Modernidade, Direito e Hermenêutica


Introdução
A chamada Pós-Modernidade, embora o termo e sua conceituação não sejam unívocos em todos os autores, representa um conjunto de situações que agrupadas configuram a sociedade atual. A expressão qualifica uma espécie de estágio presente em que se encontra o mundo no século XXI.

Pós-Modernidade
Várias são as características básicas deste estágio, podendo-se considerar primeiro o processo socioeconômico, que passa a ser embasado num modelo de produção pós-industrial, o qual por sua vez apresenta-se como a passagem da economia de produção para a de informação. O produto hoje não é aquilo com que a indústria ou o comércio trabalham mais diretamente, mas sim o significado que tal produto possui dentro e diante do mercado, não tendo mais valor o produto em si, porém ele e mais todas as circunstâncias que o envolvem, recebendo isto a nomenclatura de marca. É o que o produto representa nesta coletividade de mercado que lhe fornece sua marca, ao mesmo tempo em que a indústria também trabalha para além da produção no sentido de criar e estabelecer a marca do produto. O consumo, assim, não obedece mais rigidamente à conhecida e citada lei da oferta e procura, mas antes passa a ser provocado como conteúdo também do significado da marca.

Aqui, o consumo vem a ter atuação importante, pois se torna o fim social mais destacado dentre outros, podendo ser considerada a aquisição de certos bens ou a posse ou propriedade de certos bens, equivalentes a valores, como critério de realização, status e posição na sociedade. O consumo acaba por ser o meio de qualificação do cidadão na sociedade e a própria vida deste cidadão é considerada digna se ele reúne em torno de si a possibilidade de ter bens considerados mínimos para sua existência individual e comum.

Desta forma, o cidadão que trabalha, um trabalhador tem uma vida digna ou possui dignidade humana se conseguir obter um conteúdo mínimo de bens que garantam sua subsistência. Para tanto, seu trabalho deverá como contraprestação ser avaliado e expresso num valor monetário que permita tal aquisição. Estabelece-se, via de conseqüência, um salário mínimo que o trabalhador deva receber como garantia de sua dignidade. E o trabalhador não adquire mais mercadorias, mas o significado, a marca de possuir, usar ou fruir daquele produto.

Melhores cidadãos não são mais aqueles que exercem melhor a cidadania em si, mas os que possuem os produtos de melhor significado ou melhor marca.

Como o que gera o significado não é mais o produto em si, não há qualquer necessidade do produto ser efetivamente real, basta que seja virtual. Vale dizer, mesmo que o produto não seja palpável ou concreto, se ele possuir marca, terá valor de mercado, possuindo seu significado. Isto implica que coisas irreais como cultura, ensino, bem-estar, direitos e até mesmo cidadania possam ser consideradas e vendidas como produto.

Para melhor explicar, deve-se apontar uma outra característica da Pós-Modernidade, que é chamada pelos autores da questão do sujeito. Ao se falar na questão do sujeito ou no princípio da subjetividade, deve-se entender como se deu a modificação do conceito de indivíduo.

Normalmente, utilizam-se as expressões sujeito, indivíduo, cidadão, pessoa, como sinônimos todos de ser humano, mas para desvendar-se o problema, há que se considerar as expressões mais cautelosamente.

Aqui se fará uma distinção primeira entre indivíduo e sujeito. As demais expressões serão acompanhadas das necessárias e decorrentes explicitações de acordo com o desenvolvimento do texto.

O ser humano vem sendo visualizado, compreendido, entendido, estudado e conceituado de modo diferente ao longo da história do pensamento, da filosofia e do direito. Indivíduo é o ser humano que se percebe em sua totalidade, numa compreensão integral de si mesmo, como uma unidade completa, mas que, para viver necessita e deseja conviver, ou seja, existir em comunidade.

A expressão sujeito indica um dos modos de visão sobre e do ser humano, estabelecida a partir do século XVII com Descartes, pensador francês, que definiu o ser humano como um ser pensante, ou melhor, como algo que pensa. É dele a conhecida expressão "penso, logo existo", significando sinteticamente que a característica básica do ser humano é o pensar. A atividade do pensamento é realizada pela razão, logo o ser humano é o ser racional, ou seja, aquele que usa a razão ou que dela pode dispor independente de qualquer outra característica ou qualidade. Como a razão se situa na mente, o ser humano divide-se em mente e corpo e também em espírito e físico, em razão e emoção. Assim, o sujeito é fundado numa bidimensionalidade dada por uma estrutura racional que se opõe a uma estrutura sentimental, esta fornecida pelas sensações do corpo e aquela pelos pensamentos da mente.

Embora tenha se oposto a Descartes, o filósofo alemão Kant, no século XVIII, tentando fugir do rígido esquema dual do sujeito, acabou por permitir a amplitude do conceito, ao estabelecer a razão como elemento transcendental de conhecimento, ou seja, como único requisito para o alcance de compreensão de todas as coisas.

Em seguida, mas não em seqüência, ocorre o ápice da noção de sujeito, já no início do século XIX, com outro filósofo alemão chamado Hegel. Ao fazer a crítica de seu antecessor, sugerindo modificações inclusive no modo como a razão atua e o pensamento se realiza, Hegel consegue demonstrar que a noção de sujeito é a única possível para o ser humano e para a pessoa, pois só o sujeito, dotado de razão, que desta se utiliza num determinado modo dialético, num complexo processo de sensação-objetivação-negação-retenção-memorização-conceituação – normalmente reduzido à idéia tese-antitese-síntese – é que tem a possibilidade de conhecer todas as coisas, inclusive a si mesmo. Assim, "todo real é racional e todo racional é real". Ou seja, toda a realidade se efetiva ou se realiza no próprio sujeito, por meio de um conceito, que enxerga a realidade dos dados brutos como entes em si mesmos. Cada sujeito é dono de sua verdade e de sua realidade, as quais se formam como entes, ou seja, coisas em si. Todo real é configurado como algo em si, num ente, produzido em um conceito concebido pelo sujeito. Como a verdade tem que ser única, mas todos a tem em si mesmos, tudo passa a ser resolvido pelo critério de uma maioria racional.

Esta compreensão do sujeito aliada a outros fatores facilita muito o desenvolvimento de um modelo econômico capitalista que, mesmo com a oposição socialista baseada num inverso modelo hegeliano (viciado num erro de entendimento da amplitude da base inicial que foi invertida), termina por se estender por todo o mundo, num processo de adaptação por retro-alimentação e autobalanceamento.

Com efeito, se a verdade está no sujeito, a certeza está no sujeito, a realidade está no sujeito, a ética está no sujeito, a vida comum do sujeito é dada pela somatória da maioria dos sujeitos, que se individualizam, mas que se perdem como indivíduos, ou seja, que se perdem de si mesmos como seres integrais numa totalidade ou numa unidade. Há o individualismo, porém perde-se a individualidade, a unidade. Obtém-se uma sociedade de maioria dos sujeitos e perde-se a comunidade da unidade dos indivíduos.

O ser humano passa a ser um sujeito do ter em sociedade e deixa de ser um indivíduo a existir em comunidade. O comum é estabelecido pelo consumo e não mais por projetos ou ideais realmente comuns.

Como hoje as coisas em si podem ser virtuais, o sujeito também o pode ser, deixando inclusive de ser sujeito e passando a ser um papel, ou seja, um feixe de funções dentro da sociedade, pulverizando-se em sua racionalidade, que então é considerada apenas instrumentalmente. O sujeito como papel de funções é um significado, o significado da função que ele realiza, pois o único elemento necessário é sua razão considerada como instrumento pleno de sua capacidade. Como todos a têm, os que a puderem utilizar com o mesmo significado diante de determinada função a caracterizar um papel, podem exercer este papel, sendo enfim todos intercambiáveis. Isto quer dizer que um sujeito que por força de sua racionalidade desenvolva habilidade técnica, qualquer que seja ela, pode ser substituído por outro sujeito que tenha desenvolvido semelhante habilidade instrumental. Como o que faz o sujeito é o ter e não mais o ser, todos aqueles que desenvolvem a mesma técnica ou todos aqueles que possuem determinado conjunto de bens se consideram pertencentes à mesma classe respectivamente profissional ou social. Logo, todos perdem sua condição de integrarem uma classe por ideais, aspirações, desejos ou projetos. A situação se agrava ainda mais quando o consumo se torna conspícuo, ou seja, induzido ao extremo, produzindo inclusive a mesma categoria de desejos para todas as pessoas e dividindo estes desejos em setores para diferentes sujeitos-papéis.

O sujeito que pertencer a certa classe – não por sonhos comuns – mas por desejos comuns e tiver possibilidade de realizar a atividade de consumo ou aquisição dos bens dirigidos a esta classe é inserido na mesma classe, passando a ela pertencer, permitindo a retro-alimentação do procedimento.

Neste mecanismo, o sujeito é desconstruído em papéis, pulverizando-se em funções instrumentais que são recompensadas pelo consumo incondicional, provocado pela necessidade produzida de adquirir bens a fim de se realizar, pertencendo a uma classe, cuja característica essencial é possuir, em conformidade com o conjunto de bens exigidos, um determinado significado para a sociedade. As classes também se tornam produtos de marca, pois os sujeitos que a integram não apresentam um ser comum, mas um conjunto de marcas em comum.

O sujeito desconstruído da pós-modernidade é enfim uma marca dada por um papel, representado por uma função técnica de racionalidade instrumental, que reúne um conjunto de bens, que por sua vez são marcas que o posicionam numa classe a qual também possui seu significado e dá significado ao sujeito. Eis o processo de formação da consciência de classe da pós-modernidade a originar o sistema social.

Este processo se realiza num dado espaço-tempo que pode ser denominado de "subsistema civilidade", posto que ocorre em determinada área geográfica, por um lapso de tempo, com um dado grupo de pessoas, não importando o tamanho, a duração do tempo ou o número de pessoas (salvo se o estudo pretender analisar específico subsistema civilidade). Normalmente o espaço examinado é o da "urbes", ou seja, o da cidade em que o sujeito realiza suas atividades cotidianas, pois os demais espaços geopolíticos distanciam-se do sujeito uma vez que reconhecidamente ficcionais.

No processo social, tendo em vista a presença da noção de significado, principalmente como visto na pós-modernidade, o conjunto destes significados reunidos em ideais, valores, ou seja, aqueles bens de caráter mais etéreo ou abstrato, todos hoje derivados da noção de consumo, vão se reunir em projetos que pertencerão a uma esfera social que pode ser denominada "subsistema cultura".

A dinâmica social, tendo por ator o sujeito desconstruído, irá se realizar como ininterrupto produto dialético – não no sentido marxista da palavra – mas como uma relação de confronto constante entre os subsistemas "civilidade" e "cultura", relação esta dialética porque ambos os subsistemas se retro-alimentam e se modificam a si mesmos enquanto se relacionam. Cada classe pós-moderna a que pertence um conjunto de sujeitos desconstruídos mantém entre si subsistemas civilidade e cultura, que de sua somatória conjunta, não em adição simples, mas também numa soma dialética, produzem e mantém em funcionamento o sistema social, todo ele baseado na noção do consumo, todo ele formado de sujeitos definidos pelo ter e não pelo ser, todo ele construído em cima de marcas e não sobre a solidez de verdadeiros ideais ou projetos. Eis aí a dinâmica da pós-modernidade.

Direito e Pós-Modernidade
Diante deste quadro, o direito consegue realizar ou proteger a humanidade do ser humano ou a dignidade da pessoa humana? Para se responder, volte-se ao momento em que se construiu a noção de sujeito, ou seja, volte-se para o embrião do denominado Estado de Direito.

Num resumo bastante apertado, sabe-se que a noção de comunidade em que se fundava na Idade Média a convivência social do ser humano era fornecida pelas bases religiosas comuns. Deitavam na profundidade do sentimento religioso as concepções de mundo que permitiam os pressupostos da vida em sociedade.

Com a mudança de perspectiva na compreensão do ser humano, com a cisão entre Estado e religião, com o advento da noção de sujeito como senhor em plenitude de sua razão, esta única essência exigida passou a ser o elo comum integrador da sociedade. Fundada na razão, a comunidade passa a ser Estado, por meio de um contrato social e este passa a ser o princípio de integração do convívio comunitário. Um instrumento racional toma lugar de um sentimento difuso e comum, funcionando como imperativo categorial de união da sociedade.

O movimento em direção ao Estado da razão é impulsionado pela Revolução Francesa, cujos frutos são a base do direito atual, com seus conteúdos respectivos do Estado constitucional, dos direitos individuais, das garantias de igualdade e liberdade, com a divisão de poderes e com o voto em assembléia pelos representantes do povo.

Não se ousa pretender reduzir a importância da revolução burguesa jamais. Apenas tenta-se situar que a mudança estrutural da sociedade na época causou profundas modificações no modelo de compreensão do direito e no modo de com ele trabalhar.

O direito moderno, de conotação burguesa, reproduziu dentro de seu espaço de existência e finalidade a dinâmica que a sociedade de então exigia e seu legado foi transmitido para a pós-modernidade. Sua característica é constituir-se de base racional, com oposição entre correntes positivistas (a lei como eixo fundamental) e naturalistas (o contrato social ou então valores universais religiosos ou racionais como fundamento), visando a manutenção do sistema socioeconômico nascente da pós-revolução, de cunho capitalista.

É o direito considerado também um ente em si, pois reúne conteúdos autônomos de existência, que se dividem basicamente em direitos objetivos, aqueles preceitos fornecidos pela lei e direitos subjetivos, as decorrentes faculdades ou condições de atuação permitidas ou fornecidas pelas prescrições objetivas, ambos mantendo relação entre si, porém como entes ou coisas que se opõem.

Fala-se em humanismo diante do fato de terem sido estabelecidas garantias individuais ou fundamentais da pessoa em face do novo modelo de Estado que surgia. Tinha-se um Estado de Direito, que existia somente dentro dos limites estabelecidos constitucionalmente, representada tal limitação pela expressão dos postulados das citadas garantias. A liberdade era o valor fundamental para o ser humano.

Nos fins do século XIX e início do século XX, as certezas do Estado constitucional desmoronaram. Movimentos, que em síntese se resume aqui pela expressão correntes socialistas, lutavam pelo valor da igualdade, clamavam por uma consciência social que não permitisse a instrumentalização de algumas pessoas por outras, principalmente a dos assalariados por aqueles que retinham o capital ou os meios de produção. Nasce a era dos direitos sociais para além dos direitos individuais, ou melhor, nasce uma nova geração de direitos individuais.

As duas Grandes Guerras deitam por terra as ilusões de todos. Como o ser humano, racional por excelência, dotado de mecanismo tão perfeito como a razão, destinado a viver em igualdade e liberdade, iluminado pela técnica da mais elaborada ciência poderia cair em luta armada?Simplesmente caiu, ou melhor, complexamente caiu, pois o mundo e o ser humano não se configuravam como queriam os iluministas na inocência de seu pensamento, respectivamente, nem de um lugar onde só ocorreria o progresso dado pelo esclarecimento, nem de um animal dotado da plena razão destinado a viver em paz perpétua.

Descobriu-se que o mundo era um lugar complexo e que viver era muito perigoso. A Guerra Fria provou isto ao dividir o mundo em dois eixos verticais, ao lançar por terra todos os valores sonhados como eternos nos séculos anteriores.

A realidade gélida e crua bateu á porta. E o direito? Houve reação?

Sim, surgiram os direitos humanos no pós-guerra em nova tentativa de estabilizar conflitos entre pessoas e organizações estatais autoritárias. A lei era a garantia máxima do ser humano, porque era a medida de atuação para o governo e o Estado.

Mas o Direito era apenas a lei como queriam os positivistas ou era algo mais, dividindo-se estes últimos em correntes lastreadas em valores absolutos e outros em anseios sociais? Na primeira metade do século XX venceram os da primeira ala; na segunda começaram uma reviravolta os da segunda em conflito entre si mesmos.

Hoje, já adentrado o século XXI, descortinada a pós-modernidade, vivencia-se largamente o chamado "pós-positivismo" (de escolas diversas, também reunidas sob a denominação de "neoconstitucionalismo"). A lei é soberana ainda, porém a visão pós-positivista elege algumas características que devem fazer parte da análise do direito. São elas, em resumo: a) modelo constitucional prescritivo de lei para norma, ampliando-se o conceito desta; b) consideração de princípios como integrantes da norma em conjunto com preceitos legais ou regras; c) eleição de técnica interpretativa diferenciada da clássica pelo uso do balanceamento de princípios; d) destaque de tarefas pragmáticas e de integração à Teoria do Direito e à Jurisprudência.

Em síntese, verificou-se que o Direito também tem seu significado. Ele pode ser construído como uma marca de um produto qualquer e defender bandeiras que tal marca apresente como corretas ou politicamente corretas. Ou talvez não – diz-se talvez, pois alguns autores informam que os problemas da pós-modernidade (se ela realmente existir) podem ser identificados, mas não combatidos.

Tenta-se uma resposta, fundada não mais no retorno ao direito burguês ou a nova modalidade de direito social, ou ainda, a uma ingênua postura pós-positivista de verificar como se congrega teoria do direito com interpretação moral da constituição. Não se tentará demonstrar como valores convivem com normas porque tanto os valores como as normas são todos construídos, como se viu, pela dinâmica da sociedade pós-moderna. Tentar-se-á ler a realidade em que se vive, pois se tudo tem um significado, deve haver um modo de leitura que permita a convivência numa comunidade. Em outras palavras: tentar-se-á dentro do campo do direito um retorno à noção de indivíduo que tenha consciência real de cidadania para viver numa comunidade, para além de Têmis e Leviatã. Tentar-se-á um modelo que considere a miséria do humano, a presença do conflito, a complexidade da sociedade moderna, a multidimensionalidade do existir, os horizontes de compreensão dos indivíduos, um modelo enfim que sobreviva entre Nêmesis e Hades.

Pós-Modernidade, Direito e Hermenêutica
Baseado no pensamento de Heidegger, Gadamer, Flusser e na leitura de Márcio Pugliesi (“Por uma Teoria do Direito: aspectos micro-sistêmicos”,ed. RCS, 2005), que apresenta uma investigação sobre a possibilidade de estabelecer estratégias para a compreensão e decisão de determinado conflito, pode-se construir um método de interpretação e aplicação da norma jurídica que venha a superar os problemas apresentados pela doutrina tradicional.

Normalmente o método desta doutrina tradicional tem caráter dogmático-positivo, seguindo passos instrumentais de trabalho. Por isto, muitas vezes, a aplicação da lei acaba por se distanciar de um resultado social adequado, o que se converte numa sensação de injustiça, quando, na verdade, o aplicador da norma realizou uma atividade técnica em sua plenitude. O ponto do problema está na técnica empregada como meio de aplicação da norma que impede o operador de analisar a totalidade do fato envolvido no conflito.

De acordo com a prática judicial tradicional, a qual utiliza o chamado "método subsuntivo", não se exige a compreensão do fato como situação complexa, mas ele é isolado num desenho que deve ser emoldurado pela lei. Num primeiro momento, mediante o emprego de procedimento dedutivo-indutivo, de caráter lógico-formal, extrai-se um significado da norma que, transformado em coisa em si ou ente, justificada tal operação na idéia de suposta vontade da lei ou vontade do legislador, passa a funcionar como uma espécie de moldura à qual deve ser o fato ajustado. O erro principal, contudo, está em reduzir a aplicação da lei ao caso concreto, por um modelo de subsunção, considerando tanto a própria lei quanto o caso como "entes" – como um “sido” – como um acontecimento estático.

Para se evitar isto, na busca de uma alternativa lastreada nos autores acima, o operador do Direito tem que ler a realidade como um todo complexo, como um sistema em homeostase, no qual o problema jurídico dado caracteriza-se como conflito – o que já é considerado pela doutrina tradicional em parte, ao falar em conflito de interesses. Tal conflito tem de ser visto como um fenômeno, algo que surge em movimento vivo dentro do sistema social homeostático, provocando um desequilíbrio que precisa ser encerrado, decidido, solucionado.

Neste novo modelo proposto, que pode ser denominado de “hermenêutica da compreensão”, para ler o caso concreto o operador deve considerar uma função triádica cujos elementos são apresentados e explicados na forma seguinte:
S = situação (atores num espaço-tempo)
AEP = agentes externos de pressão
FAD = fatores atuantes determinados

Em S considerar:
a) Espaço-tempo como relação constante
b) Atores diretos envolvidos no conflito
c) Lugar específico do conflito
d) Tempo específico do conflito
e) Objeto real do conflito, ou seja, elemento derivado do projeto inicial de cada ator e concretizado como interesse respectivo no conflito.
Em AEP considerar
a) Poder estruturado no governo
b) Grupos organizados de pressão direta
c) Mídia e respectiva repercussão
d) Grau de influência do que se pode chamar "inconsciente coletivo popular" sobre a situação conflitiva
Em FAD considerar
a) Textos legais frutos de um determinado sistema político-jurídico, presentes num dado sistema constitucional, representado por princípios diretivos de ação, por preceitos constitucionais estabelecidos e por regras infraconstitucionais. Os textos legais funcionam como projetos pré-estabelecidos para o horizonte da ação concreta.
b) Decisões precedentes que irão funcionar como termômetro de consciência dos julgadores, principalmente os do tribunal máximo, que é o mais político de todos.

Hermenêutica da Compreensão: a leitura da norma
Não basta, como na plataforma subsuntiva clássica, apenas ler a lei e adequá-la a constituição ou ler os princípios, partindo da dignidade da pessoa humana e encaixá-los na lei, usando o significado obtido como um ente que serve de moldura ao caso concreto. Também não é suficiente o uso já comum de uma analogia retórica, cuja função é a mesma do argumento de autoridade.

É preciso ler o texto legal em seu contexto completo e complexo, ou seja, efetuar uma leitura com base na situação (S), recolhendo, retirando desta todos os componentes fáticos possíveis e ponderá-los num confronto direto com o texto legal, considerado este como projeto para uma dinâmica de redução de complexidades, ou seja, como eixo orientador da ação concreta.

O operador tem, em primeiro lugar que ler a realidade expressa pela situação. Em seguida, ponderada esta, deve concretizar o texto numa norma que decida (corte) especificamente o conflito. Na leitura do texto, o operador deve recolher todo o conteúdo semântico presente no próprio texto como projeto “escrito” do grupo social. Deve buscar a finalidade ou a proposta mais ampla do texto legal, inserido na cultura que o produziu. De posse desse conteúdo semântico, o operador estabelecerá uma relação de ponderação com a situação, sopesando ainda os agentes externos de pressão (AEP).

Finalizando seu trabalho, deverá expressar sua decisão de modo a criar uma norma concretizada, ou seja, um preceito ou regra que, contendo toda a significação da situação, seja aplicável àquele caso como concreto em si. Em termos heideggerianos, deve buscar o sentido do ser do conflito como uma realidade (a desequilibrar a homeostase sistêmica) e fazer de sua decisão o corte necessário a modalizar o conflito de forma que este se torne um ente, um modo de ser dado, “sido”, cuja finalidade específica e necessária será permitir a retomada da homeostase social.

Pelo modelo clássico, o conflito é um dado temporal e o significado da norma, extraído subsuntivamente é um ente atemporal e por isto pode ser aplicado a qualquer conflito semelhante, numa analogia superficial, como uma moldura a encerrar o caso, que em sua realidade efetiva acaba por vezes a não ser resolvido.

No modelo proposto, o conflito é considerado atemporal, logo não um ente, mas um campo de possibilidades amplificado, cuja presença e permanência provocam um indesejado desequilíbrio sistêmico em face do aumento dessa mesma amplitude de possibilidades (um caos estruturado de cálculo mais aberto). A decisão que corta o conflito permite a passagem deste para o temporal, uma vez que reduz toda sua complexidade pela norma concretizada num determinado modo de ser, num ente (sido) que permite a retomada do equilíbrio homeostático social. Para reduzir o conflito a um modo de ser efetivo, há que se descobrir o sentido real de seu ser e estabelecer normativamente um definido modo de ser, eis a proposta da “hermenêutica da compreensão”.

A decisão mais formalmente técnica-dogmática é a que considera FAD e S em relação direta. A mais política, FAD e AEP. Finalmente, a mais ponderada, a obter efetiva homeostase da dinâmica social é a resultante que se encontra num perfeito ponto de equilíbrio entre FAD, AEP e S. Num resumo de palavras a fim de conceituar os componentes de trabalho, seguindo exemplo heideggeriano de um retorno à tradição ou “genealogia” dos termos, o operador do direito deve agir com dois elementos de ação, inspirados em duas expressões gregas: logos e fronesis.