Por Dentro da Lei

Por Dentro da Lei

31 de julho de 2013

Se uma pessoa é gay, quem somos nós para julgar?

Papa Francisco fala sobre não discriminação


Com essa pergunta, em entrevista no voo de volta, o Papa Francisco encerrou sua visita ao Brasil. Diante de tantas mensagens e exemplos de vida cristã, talvez a fala seja a que deva provocar mais a nossa reflexão.

De forma completa, o Papa se expressou assim: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-lo? O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas integrados na sociedade".

O que mais provocou não foi o fato do Santo Padre ter se referido à figura do “gay”, mas ao tema da “não discriminação”. Ninguém deve ser tratado de forma pior ou injusta por ser gay. E, se lembrarmos de suas várias mensagens ditas ao longo da participação nessa Jornada Mundial da Juventude, podemos concluir que ninguém deve ser discriminado, vale dizer, tratado de forma desrespeitosa ou impropriamente diferenciada por ter qualquer característica pessoal, física ou cultural que seja preconcebida como inadequada ou incorreta.

Por esta postura, o discriminar deixa o plano da simples legalidade e caminha para o do humanismo. No momento em que determinada regra de ordem supostamente dogmática – como no caso, acreditar que a pessoa gay, por simplesmente ser gay, recebe a imputação de pecadora – é superada pela ação maior de se combater a discriminação, verifica-se que o foco passa a ser outro: desloca-se a tônica do identificar o pecador, apontá-lo e julgá-lo para a de integrá-lo e conviver com ele, porque, ao final, no ato de discriminar, comete-se também um pecado e, cada vez que julgamos alguém com base em posições preconcebidas, tornamo-nos também pecadores.

Pecadores são todos aqueles que julgam preconceituosamente, embasados em conceitos prévios – “pré-conceitos”, concepções formadas sem exame ponderado, sem análise aprofundada. Não discriminar significa agir com cuidadosa prudência para que juízos precipitados deixem de prevalecer. Não julgar equivale a evitar assertivas infundadas ou distantes do refletir crítico.

A lição pode ser aproveitada para além do universo católico ou cristão. E pode ser bem empregada no ambiente jurídico. Quantas decisões são tomadas com base em elementos dogmáticos, pré-formulados, lastreados em argumentos de autoridade e que, portanto, não foram submetidos a exame meticuloso e ponderado?

A discriminação inconsciente é problema no direito do pós-positivismo e dilema existencial humano na era pluricultural presente. Nada mais é ponderado, abalizado, trabalhado com tino e sensatez. Vale o ditado pela moda, pelo midiático, por aquilo que chama a atenção e é considerado politicamente correto.

A própria “questão gay” é assim tratada. Hoje está em voga ser a favor daquilo que é considerado “in” ao universo gay. Falar-se contra é praticar a homofobia, a qual foi posta inclusive como pauta penal.

A questão não é julgar o gay, como disse o Papa, não é agir contra o indivíduo que, diante do amplo espectro das dimensões da vivência humana, naquela referente à sexualidade, expressa sua condição pessoal de sentir-se atraído pelo mesmo gênero. O problema reside não no chamado fornecido por sua sexualidade, mas na qualidade da relação que é ditada por ele.

Seja hétero ou homossexual (o politicamente correto manda falar homoafetivo), hoje, na sociedade de mercado, que se alimenta do consumo e que busca formar não a consciência de cidadania, mas a concupiscência pela mercadoria, as relações todas foram pulverizadas, fizeram-se fluídas.

A pessoa gay e a pessoa hétero – principalmente com o recém-criado conceito de metrossexual – têm de se comportar de acordo com o respectivo ambiente gay ou hétero em que convive, consumir produtos específicos, frequentar lugares específicos, falar e apresentar-se de forma a demonstrar a “categoria” a que pertence.

No campo das relações vale a noção pós-moderna de felicidade, outro bem de consumo fugaz a ser obtido a qualquer custo. O imperativo “importante é ser feliz” determina os relacionamentos, esquecendo-se de que feliz aqui envolve o eu e o outro num percurso de construção, desconstrução e reconstrução inerente ao processo vital da consciência e afetividade humanas.

Evitar discriminar o gay, portanto, pode ser visto como convite para resgatar a humanidade do humano, para além do preconceito e para além do politicamente correto. Talvez seja esse o milagre da ressurreição a que anseia o mundo moderno.

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Publicado originalmente no Blog do Jornal Tribuna do Direito
(leia no site aqui)
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12 de julho de 2013

Os crimes da novela Amor à Vida


Paloma e Bruno disputam Paulinha em Amor à Vida


A novela da Globo, Amor à Vida, provocou algumas manifestações nas redes sociais com os eventos da trama principal envolvendo o triangulo principal de personagens.

Para quem não acompanha o folhetim televisivo, o enredo trata de Bruno que, após ter perdido a mulher quando esta dava a luz ao único filho natimorto do casal, encontra no lixo uma recém-nascida. Contando com a médica Glauce, ele cria a falsa história de que a menina é sua filha legítima e registra-a, batizando-a de Paula.

Doze anos depois, Paulinha é a alegria da família de Bruno, que, por sua vez, conhece Paloma. Ela e Bruno se apaixonam até que no decorrer de eventos, que envolvem um exame de DNA e muitas viravoltas, Paloma descobre que Paulinha é sua filha, subtraída no hospital. Revoltada com Bruno, Paloma leva Paulinha para seu apartamento e a mantém lá contra vontade da menina.

Chamou-me a atenção o destaque que se tem dado aos “crimes” de Bruno e da médica Glauce. Decidi falar sobre eles, pois pode-se aproveitar para um estudo penal. Haveria crime? Qual seria a conduta mais grave? Quem seria o real criminoso?

Vamos começar com Bruno. Ele achou uma criança no lixo. Tomou-a e a registrou como sua. Esta conduta é tipificada no CP (Código Penal) no art. 242, segunda parte, conhecido informalmente como “Adoção à brasileira”.

Observe-se que o parágrafo único permite ao juiz deixar de aplicar a pena se o motivo é de fundamento nobre. Creio que salvar uma criança do lixo, portanto, da morte certa, criá-la e educá-la, dando-lhe a possibilidade de vida digna, deve ser reconhecido como gesto da mais alta nobreza. Assim, Bruno poderia responder ao processo, mas talvez não viesse a ser condenado. Ademais, com a pena máxima de dois anos, prevista também no parágrafo único, a prescrição ocorreria em quatro anos, logo, poderia nem haver processo.

A médica Glauce possivelmente responderia por falsidade ideológica, uma vez que inseriu declaração falsa no prontuário médico, nos termos do art. 299 do CP, sujeita a pena de até três anos de reclusão. Todavia, como a finalidade foi colaborar no delito do art. 242, ela poderia ser considerada coautora deste ficando a falsidade absorvida. Em ambos os casos, a prescrição teria alcançado qualquer das duas condutas.

E Paloma, a mocinha da história? Deixando de lado a falta de maturidade da personagem, que é médica, quando descobriu ser mãe biológica de Paulinha e sob este pretexto, decidiu arbitrariamente levar e manter a menina em sua residência, sem deixá-la ver o pai, em clara privação de sua liberdade. É isso mesmo, a médica Paloma impediu, frustou, destituiu Paulinha de seu direito de ir e vir, motivada pelo egoístico motivo de acreditar ser sua mãe – com efeito, o único elemento de convicção é um exame de DNA.

A mocinha da história, sob o motivo de ser a real mãe da menina e acreditar ter sido ela subtraída doze anos antes, praticou o crime de sequesto ou cárcere privado!

Previsto no art. 148 e qualificado neste caso, pelo fato de ser contra menor de 18 anos, o sequestro é um dos mais graves crimes do CP e atinge um dos mais fundamentais direitos do ser humano que é a liberdade. O crime está em andamento e portanto Paloma poderia ser presa em flagrante, pois o pai da menina legalmente é Bruno.

Como se pode ver, o crime mais grave é o de Paloma, que pensa se justificar em sua pessoal arbitrariedade de entender-se no direito de reter ilegalmente a menina. Bruno e Glauce nem podem mais ser considerados “criminosos”.

Obviamente uma obra de ficção deve existir dentro da lógica própria de seu enredo. De uma novela não se pode esperar muito – embora algumas pessoas teimem em levá-la por demais a sério. Pelo menos, serviu para este breve estudo de direito penal.

Uma última palavra: não analisei a conduta do principal vilão, Félix (em inspirada, cativante e antológica interpretação de Mateus Solano). Por ser muito complexa, ela exigiria um texto à parte.


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Publicado originalmente no Blog do Tribuna do Direito (para ler no site clique aqui)
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