Por Dentro da Lei

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7 de maio de 2015

OS FOFOS NÃO ENCENAM: TEATRO, BLACKFACE E PRECONCEITO

Publicado originalmente no Blog do Jornal Tribuna do Direito
(para ler, clique aqui)



A notícia de que a peça “A Mulher do Trem” da Cia Os Fofos Encenam teve sua apresentação cancelada causou surpresa nos meios teatrais. Isto porque no espetáculo seria empregada a técnica do blackface, considerada por muitos como ato de racismo.


Cena da peça ‘A mulher do trem’, da companhia de teatro Os Fofos Encenam - Reprodução / Facebook

A matéria foi divulgada por alguns amigos no facebook e os comentários que li me constrangeram. Posições absurdamente dogmáticas: "blackface É racismo!” Além disto, quando também divulguei a matéria, com a opinião que exporei a seguir, fui orientado a pesquisar mais e desestimulado a falar porque não sou negro.

Sinto-me preparado para falar porque sou coordenador da Oficina de Teatro da OAB-SP, grupo que já existe há três anos e tenho feito alguma pesquisa sobre o tema, incluindo neste caso a questão de maquiagem.

Quanto ao fato de não ser negro, não penso que não possa falar. Primeiro, porque meu nome em árabe, posto ser de ascendência libanesa, pode ser traduzido como "aqueles que têm a pele escura", apontando que meus antepassados foram distinguidos pela cor, uma vez que eram originários da Abissínia. Depois, é característica da atividade do advogado defender direitos dos quais não é titular ou protagonista, muitas vezes tendo de assumir o olhar de seu constituinte sobre a questão. E, como leitor de Gadamer, creio que a compreensão – e não a razão – é a característica essencial do ser humano, pela qual desnudar a linguagem e encontrar a palavra adequada é o caminho para vencer preconceitos, o que inclui a superação do sujeito burguês e a imersão no plano da intersubjetividade.

Não vi até agora no episódio nenhuma proposta de se questionar as bases do uso da técnica ou a delicadeza de se proibir uma encenação por suposta acusação prévia de racismo. O mais grave foi o Itaú Cultural aceitar isto. Quando se trata de uma peça de teatro ou de arte em geral, deve-se observar a obra para posteriormente julgá-la, mesmo que se suponha que esta seja desde o princípio algo sem valor ou contrário a valores. Não se deve fazer juízo prévio da arte, nem de questões de cidadania em geral.

A técnica do blackface em si mesma não é racista ou não. É seu uso e contexto que podem torná-la racista. Ou, forma crítica de arte. O Itaú Cultural teria o direito de suspender o espetáculo, mas seria legítimo exercê-lo por conta da acusação de racismo por emprego de uma técnica, de antemão, sem nenhum exame de conteúdo e contexto?

Não sei se isto é forma de censura, contudo, preocupa o fato da decisão estar alegadamente embasada numa questão de cidadania, que na atualidade está assumindo ares de dogmática. A história demonstra que os autoritarismos nasceram de boas intenções e da defesa de valores então tidos como categórica e previamente legítimos.

Racismo é pauta fundamental para a cidadania. Revelar estruturas escondidas no discurso e na dinâmica da sociedade moderna também. Porém, considerar tudo a priori é muito delicado.

Como dito, uma técnica é sempre uma técnica. É o momento histórico e sua utilização que dão a ela significado positivo ou negativo. Não podemos associá-la ao momento em que teve sua maior apropriação, que foi o das comédias americanas do final do século XIX e início do século XX, em que o contexto era totalmente outro, diferente daquele em que o uso de máscaras foi mais praticado no plano do teatro, principalmente no período da chamada Commedia dell'arte (lembrando que a técnica de máscaras é milenar).

Insistir que a técnica está intimamente ligada ao vaudeville norte-americano, com suas raízes na estrutura de dominação, é esquecer a lição de pensadores que nos legaram essa metodologia de buscarmos as relações contidas nos discursos e ações sociais. Na época do show dos menestréis americanos, havia um deboche com a figura do negro, certamente. Mas a tradição circense não pode ser acusada do mesmo. Atores de circo eram eles mesmos excluídos e utilizavam-se da técnica.

Além disto, acusação veio sem que o acusador – uma jovem que viu a notícia de estreia da peça e criou a página de protesto – tivesse visto o espetáculo, ou seja, sem qualquer análise contextual. Ela foi julgada como se fosse parte do vaudeville americano, quando foi escrita muito antes disso.

Apenas pelo emprego do blackface se fez um juízo prévio de racismo. Isto não é lutar contra o preconceito. É uma forma perigosa de se ver a realidade, precipitando-se análises que deveriam ser mais cuidadosas.

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Para quem tiver interesse, o texto original da peça está no link a seguir

Há também um filme de 1934, dirigido por Christian Jaque

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