Por Dentro da Lei

Por Dentro da Lei

28 de novembro de 2006

Um conceito de Vida humana para o Direito Brasileiro (parte II)

Na década de 40, o físico austríaco SCHÖDINGER (1997) estudou o tema a partir de conceitos de física e biologia. O mérito de seu trabalho, em que pese não ter alcançado a definitiva solução, foi adotar a noção de organização, a qual veio a superar a de evolução por seleção natural, ao combiná-la com a de estabilidade genética e dinâmica celular.

Com isto a idéia de organismo integrou-se à de organização. Para se conhecer um organismo é preciso estudar-se sua organização, que é dinâmica. Este dinamismo de movimento é o fenômeno que aparece ao se contemplar um organismo. Ora, se há movimento, como então o organismo se mantém o mesmo? Há o movimento, há uma organização constante e dinâmica, mas que obedece a duas propriedades, a saber: estrutura e padrão de organização.
Reconhece-se, então, um sistema, ou seja, um conjunto de elementos (componentes) e um conjunto de regras que determinam ou orientam as relações entre tais componentes fornecendo sua estrutura. Num sistema, os seus elementos relacionam-se e, assim, adquirem uma organização, uma totalidade que revela a regra do sistema. Organização de um sistema é a disposição (padrão) de relações entre componentes que produz o próprio sistema.
As relações existentes visam sempre a uma finalidade específica e é por esta que se pode conhecer o próprio sistema. Para ressaltar, é a totalidade da organização ou finalidade que determina a regra para compreensão da unidade sistêmica.
Com relação aos seres vivos, a característica básica é a auto-organização (também denominada autopoiese, decorrente do grego, criar ou produzir a si mesmo) a permitir uma rede contínua de interações. Sistema vivo é,deste modo, um processo dinâmico de auto-organização das estruturas, respeitando-se sempre o mesmo padrão. Deste modo, o processo de vida é a atividade abrangida na contínua incorporação das relações de organização do sistema, uma organização autopoiética.
Tudo o que se precisa fazer para descobrir se um ser é vivo é observar se seu padrão de organização é uma rede autopoiética, a qual tem por característica básica a continuada produção de si mesma. Donde pode se concluir que o ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, porque a rede viva, constantemente, cria a si própria.
Tem-se aí a diferença entre um sistema vivo e um sistema não-vivo. Em ambos encontram-se presentes a organização de estruturas padronizadas de componentes; em ambos há o ser e o fazer. Todavia, no primeiro, o ser e o fazer são realizados autonomamente, pelo próprio ser, enquanto se faz a si mesmo e, no sistema não-vivo, embora haja o ser (do próprio sistema), o fazer ocorre por força externa, ou seja, o sistema não-vivo é feito por outro; precisa ser construído. A unidade sistêmica viva é um ser que se faz e a não-viva é um ser que é feito.
O ser vivo tem a faculdade, a capacidade, a potencialidade de se fazer a si mesmo e, por isto, tem consciência de si. A expressão consciência é empregada aqui com a idéia de cognição, ou seja, o sistema vivo, ao fazer-se, acaba por realizar um processo de cognição, um modo de relação, com o meio no qual interage.

16 de novembro de 2006

Um conceito de Vida Humana para o Direito Brasileiro (parte I)

A CF inicia seu texto com seus princípios fundamentais e um dos fundamentos do Estado é justamente a dignidade da pessoa humana (art.1º, III). Logo depois, o art. 5º, caput assevera que o direito a vida é inviolável. O ordenamento brasileiro, assim, é amparado sobre dois pilares: dignidade da pessoa e vida humana.

Por óbvio, sem vida humana não se pode falar em pessoa, portanto considerando-se esta base antropológica constitucionalmente estruturante, como a denomina CANOTILHO (s.d:248, 405 e 414), a colocar o indivíduo como ponto central da trama constitucional, um questionamento inicial se faz necessário: investigar o que seja vida e como ela se manifesta em sua forma humana, para que se possa compreender o alcance dos dispositivos constitucionais.
Quando se fala em vida, ao se olhar apenas o texto legal e os princípios constitucionais, pode se chegar à conclusão de que há a possibilidade de vários conceitos. Permanece-se, contudo, limitado a duas linhas de interpretação diante de cada caso concreto, das quais, em síntese, a primeira provém do texto de eventual lei para chegar ao da constituição e a segunda, dos princípios constitucionais para a incidência destes sobre os preceitos normativos.
O problema talvez ainda não tenha sido abordado adequadamente, fato que impedirá chegar-se à essência da discussão que o envolve. Antes de tudo, cabe a observação de que o atual paradigma das ciências sociais, dentre elas o Direito, vem sofrendo profundas mudanças, as quais podem ser consideradas verdadeiras rupturas, principalmente no que tange ao método de trabalho, como bem esclarece, SOUSA SANTOS (2003:29 e 60), após relatar a crise do modelo científico dominante, ao afirmar a emergência de um novo paradigma de conhecimento e salientar a visão científica como um sistema não reducionista, que enxerga o objeto, o observador, as finalidades presentes e as relações existentes.
De acordo com o novo modelo de análise, a postura atual, de natureza mecanicista-causal, é colocada de lado e passa-se a abordagem mais ampla em termos de relações e integrações, enfatizando-se princípios básicos de organização, não se permitindo limitá-los a suas partes.
A técnica proposta deve ser aquela que observa o fenômeno e, por sua manifestação, em seu todo, examinando os resultados finais de sua aparência, presença ou ação, busca encontrar os elementos respectivos e os padrões de suas respectivas relações. Ou seja, é preciso, diante da situação que aparece e com a qual se depara, a partir dela verificar os mecanismos que a envolvem.
Como se pode conceituar vida? Pela atividade cerebral? Pelo batimento cardíaco? Pela formação da consciência ou pela possibilidade de autoconsciência? Residirá a vida na possibilidade de fruição política ou de cidadania? Estará a vida atrelada a um conceito de padrão social ou econômico que, se não atingido, não permite a realização desta mesma vida? Será a vida medida, calculada, estimada pelo tempo de sua duração, sendo válida aquela que apenas perdurar por determinado decurso?

10 de novembro de 2006

O aborto é crime no Brasil?

Alguns projetos de lei visam alterar o Código Penal para descriminalizar o aborto. Sua principal justificativa parece residir nos altos índices de mortalidade de gestantes não adequadamente atendidas quando em situação de abortamento. Se o aborto não constituísse crime, tudo seria resolvido.

Se esta idéia lastrear o projeto, a mudança não é de modo nenhum essencial. Na verdade, ousa-se afirmar que o aborto não é crime perante o ordenamento jurídico. Com efeito, no aspecto legal, tem-se quatro modalidades de aborto: o natural; o necessário; o sentimental e o ilícito.

O aborto natural é aquele que ocorre por circunstâncias biofisiológicas, sendo involuntário à gestante, que normalmente pretendia a continuidade da gravidez. Este caso por óbvio não tipifica o crime de aborto.

Necessário é o aborto assim chamado quando praticado se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, a não ser com o sacrifício do feto. Embora a lei diga simplesmente que não será o fato punido, na verdade, se está diante de uma causa excludente de antijuridicidade, a qual implica dizer que não há crime, pela ausência de um de seus elementos constitutivos. O aborto necessário também é denominado terapêutico ou curativo e não configura crime.

O aborto sentimental é aquele que pode ocorrer quando a gravidez tiver origem num ato de violência contra a mulher, vítima neste caso de crime contra sua liberdade sexual, configurado basicamente pelo estupro. A lei penal em consideração a integridade sentimental da mulher permite o aborto, dizendo que ele não é punível. Verifica-se ainda a ausência de antijuridicidade como no caso anterior e o fato não é considerado criminoso. O aborto sentimental recebe a denominação de humanitário, moral ou ético, em face de tentar diminuir os reflexos negativos da violência à recuperação da mulher. E não constitui crime.

As três modalidades acima não tipificam qualquer ilícito penal e, assim, podem ser atendidas as gestantes que se apresentarem para socorro em situação de abortamento, sem qualquer implicação de natureza penal.

O único tipo ilícito de aborto é aquele provocado pela gestante ou por terceiro, seja médico ou não, com ou sem consentimento, motivado por outra circunstância que não as acima tratadas. Criminoso é o aborto provocado sem finalidade terapêutica ou sentimental, sem visar proteção da vida física ou moral da gestante. Ele é gerado pela insegurança, pelo medo, pela irresponsabilidade, pela falta de informação e pela falta de apoio individual e social. Enfim, sua causa não é natural, terapêutica ou humanitária, mas de natureza sócio-econômica.

A gestante, nesta situação, encontra-se isolada, sem amparo, sem perspectivas, sem horizontes, abandonada mesmo pelo companheiro que, em momentos anteriores, sob a proteção da intimidade, mediante suaves carícias, prometia-lhe a luz das mais distantes estrelas.

Diante de tal quadro não sabe ela qual resposta oferecer e busca a irresponsável via criminosa, porque ser responsável não é comportar-se de acordo com um quadro ético-jurídico predeterminado, mas sim saber qual resposta apresentar diante de uma dada situação. Porém, a gestante em sua posição de abandono não enxerga caminhos. E a saída mais simples é eliminar a inocente vida potencial que se apresenta como a fonte do problema. Então se tem o aborto sócio-econômico.

Se a questão for evitar a mortalidade feminina em face do abortamento, o projeto de descriminalização é dispensável porque, como visto, em três modalidades contra uma, o aborto não é crime no ordenamento jurídico brasileiro. E as gestantes podem ser atendidas. Resta apenas saber se a administração da saúde tem condições de atendê-las.