Com a aprovação na Argentina de lei que trata do aborto,
volta à tona o debate sobre esta questão.
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Percebe-se de início, já a partir da divulgação da mídia,
que o tema começa mal abordado. Com efeito, ao se ler as manchetes, verifica-se
a presença da expressão “legalização”. Obviamente, os veículos devem procurar
termos que provoquem o maior efeito possível de atração no leitor, porém,
muitas vezes uma palavra inadequada pode gerar a incompreensão do ponto central
daquilo sobre o que se debate.
A expressão “legalização do aborto” é inadequada e, até
mesmo, incorreta do ponto de vista técnico-normativo. Não se trata de
“legalizar” o aborto, mas sim de “descriminalizar” certas condutas relativas ao
aborto.
Legalizar é uma expressão técnica que significa expressar
por meio de lei certa faculdade de praticar determinada conduta. A lei, neste
caso, torna clara autorização cuja possibilidade de prática já era considerada
faculdade possível e aceitável do indivíduo. A lei apenas regulamenta a
autorização clara dessa prática, podendo prever certas condições. O exemplo
clássico é o consumo do cigarro, que é legalizado, mas possui restrições, possuindo
regras específicas para produção, divulgação, venda e consumo.
Descriminalizar é retirar certa conduta do rol de crimes,
vale dizer, deixar de arrolar essa conduta como tipo penal, previsto em
legislação específica, normalmente o chamado código penal. Retirar a conduta do
rol de crimes, ou seja, descriminalizar, não significa que aquela conduta
retirada passa a ser considerada “natural” ou livre a ser plenamente praticada.
O exemplo clássico é o adultério. Até bem pouco tempo, o adultério era
tipificado como crime no código penal, mas, a partir de 2005, deixou de o ser.
Isso não significa que o adultério passou a ser amplamente aceito por toda a
sociedade, bem ao contrário, é causa de separação de inúmeros casais de diferentes
classes sociais. Com a descriminalização, o adultério deixou de ser crime, mas
não se tornou conduta automaticamente autorizada, nem tampouco um direito para
aquele que o pratica. A descriminalização tem um único efeito: ao retirar da
legislação penal, o Estado não pode mais intervir publicamente naquela situação
e o agente não pode mais sofrer nenhuma persecução de natureza criminal.
Essa distinção é fundamental, principalmente numa questão
tão delicada quanto o aborto. Ao se alegar erroneamente a “legalização do
aborto” produz-se naquele indivíduo, que possui visão de mundo diversa, reação
imediata de rechaço, de contestação frontal, de repúdio e, com isso, se encerra
instantaneamente qualquer possibilidade de debate.
Com efeito, aborto significa interrupção da gravidez com
eliminação do produto da concepção. Esse produto da concepção, como se sabe, é
o feto ou embrião. Esta figura do embrião é relevante para a sociedade em
geral, indiscutivelmente, porque é comum os futuros pais procurarem recursos
tecnológicos (que evoluíram também por conta disso) para acompanhar o
desenvolvimento de seu futuro filho. É tão importante que alguns ativistas
chegam a criticar o progresso de tal tecnologia porque justamente ela
possibilita esse acompanhamento, até pelo olhar, o que dificulta afirmar que o
embrião é só uma “coisa”.
Realmente é difícil hoje em dia argumentar que o embrião é
um objeto qualquer e nem os cientistas que trabalham com experiências nesse
campo o fazem. Além disto, está muito arraigado ao conceito de aborto ocorrer a
supressão do feto, tanto que a conduta se capitula nos delitos contra a vida. É
provável que a maioria das pessoas entendam haver um processo vital durante a
gravidez. É também provável que muitos ativistas entendam da mesma forma,
porque é comum o confronto antagônico do “direito de viver” do feto versus o
“direito de decidir” da mulher (se os ativistas usam o direito de decidir como
argumento, possivelmente entendem que haja um outro direito a ser superado pelo
primeiro).
Quando se aborda a questão sob o ângulo da descriminalização
– e isto é muito importante – não há a necessidade de se questionar se há vida
ou não do feto. A analogia aqui pode ser feita com a legítima defesa no delito
de homicídio. A legítima defesa é uma excludente de ilicitude, portanto, quando
ela existe, mesmo que o homicídio esteja tipificado, mesmo que outra pessoa
tenha sido morta, há uma causa que justifica a conduta e a impede de ser
considerada criminosa.
Este é o ponto principal!
Não há necessidade de se pensar o debate a partir da
oposição entre “pró-decisão X pró-vida”, ou conservadores e progressistas, ou
ainda entre legalidade e ilegalidade. Penso que, mesmo os ativistas mais
ferrenhos, não sejam a favor da eliminação do feto e posso afirmar, com certa
segurança, que ninguém é a favor do aborto. Neste sentido, é possível haver
pessoas que sejam contra o aborto, mas que também não queiram ver jovens
gestantes jogadas na cadeia por conta do crime de aborto.
O que está em jogo é a descriminalização do aborto!
Diante da realidade brasileira, não creio que estejamos
preparados para seguir o exemplo argentino, que, a propósito, não “legalizou” o
aborto. Na Argentina, foi modificado o código penal, para acrescentar ao crime
de aborto um elemento constitutivo de ordem temporal (em direito penal, chamado
de elemento normativo do injusto). Vale dizer, não há crime de aborto, não se
configura conduta típica, se a interrupção ocorrer dentro do lapso de tempo de
até 14 semanas.
Isso não significa que a gestante, ao acordar pela manhã,
vai pensar consigo, ou dizer a seu companheiro (se ela o tiver), “hoje acordei
com vontade de decidir pelo aborto”. Essa decisão, como indica a prática
criminal – e provavelmente a médica – não é algo fácil em nenhuma circunstância
e, creio, nunca o será.
Dito isto, penso que o debate brasileiro deve seguir não
para o acréscimo de um elemento temporal a constituir o tipo penal, mas por
mais um elemento de exclusão de ilicitude, além dos existentes.
Só para lembrar, nossa lei não tipifica o crime quando o
aborto é espontâneo (por óbvio), nem quando a gestação coloca em risco a vida
da gestante (incluindo o caso do feto anencéfalo), nem quando a gravidez é
fruto de violência sexual.
Há uma outra causa que pode ser levada em consideração: a
questão social provocada pela desigualdade.
Aliás, este foi o fundamento da mudança da lei argentina
(permitir o abortamento pela rede pública de saúde para as mulheres que não
tenham condições). E é o principal argumento de diversos ativistas, de que o
aborto é questão de saúde pública.
Sabe-se que o aborto é praticado clandestinamente. Porém, as
gestantes que têm recursos o podem fazer em clínicas especializadas, sob todos
os cuidados, mesmo tendo todas as condições para ter a criança.
Quem realmente sofre é a gestante sem recursos, que não
possui emprego ou meios, que é abandonada pelo companheiro (que lhe fazia juras
de amor até momentos antes da notícia da gravidez), que é abandonada pela
família e pelo governo e que é execrada pela sociedade, porque “foi arrumar
mais filho”.
Assim, a questão a ser discutida é se é possível a lei
brasileira aceitar uma excludente de ilicitude, para que tais gestantes, além
do enfrentamento da própria situação de angústia, não fiquem também à mercê de
procedimentos de altíssimo risco e não se sujeitem a responder a um processo
criminal.
Certamente isto depende de uma discussão bem elaborada, mas
ela é mais aceitável, mesmo diante de pessoas mais conservadoras, porque, pelo
menos supostamente, busca-se lutar contra a desigualdade e ninguém pode ser classificado como criminoso por ter de enfrentar sozinho uma situação tão
delicada quanto esta. E fica claro, ainda, que não há nenhuma necessidade de se
ser a favor do aborto para isto.
Publicado originalmente no Estado online
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