O tema educação nos chama a atenção sempre, contudo, com mais intensidade, quando os horizontes buscados são nebulosos e quando as teorias evocadas relembram propostas medievais, sem, todavia, o mesmo espírito humanista da época. Para alguns, hoje, a Educação deve ser entendida quase como sinônimo de puritanismo. Um puritanismo a ser imposto pela dor.
O assunto de que os pais devem educar os filhos por meio do castigo mais uma vez voltou à tona, tanto por conta de uma declaração em vídeo do atual ministro da respectiva pasta, como pela notícia de que a Justiça do Rio de Janeiro determinou a apreensão de um livro, cuja autora defendia tal ideia.
Atualmente, deixa-se de lado a noção de que o processo pedagógico é um processo de formação e destaca-se a visão de que é técnica dentre técnicas, cujo objetivo é a de busca de produtividade e eficiência, mas não de saber e conhecimento.
A expressão formação é muito importante para pensadores alemães, como Gadamer, por exemplo, pois ela remete ainda ao conceito de cultura, modo especificamente humano de aprimoramento. E aptidões humanas são aperfeiçoadas na relação intrínseca de todos os sentidos. Em alemão, formação é Bildung, cujo sentido traduz tanto a noção de processo como a de resultado. A palavra alemã remete também à ideia de imagem, em alemão “Bild”, contida em “Bildung” e representada por “forma”, em português, na palavra “formação”.
Forma, pode-se recordar, tem raiz longínqua no pensamento grego e pode ser considerada sinônimo de “ideia”. O principal defensor da teoria das ideias foi Platão, como se sabe, o qual, em seu livro mais conhecido, A República, apresenta também uma metodologia pedagógica. O objetivo de Platão na obra, dentre outros, era apresentar os mecanismos de formação de bons cidadãos. Para tanto, a educação (paideia) deveria ser adequada a isso. Com todo seu rigor, porém, Platão nos aponta que a educação deve começar pela música. Assim, em que pese a rigidez, própria aos objetivos a que se propôs, o filósofo grego não abandona a arte como porta de entrada para a educação.
Outro pensador, Plutarco, que escreveu o considerado primeiro tratado pedagógico da história, chamado “Da educação das crianças”, propõe um conjunto de regras morais sobre a educação, antes do que propriamente uma metodologia sobre ela. Os conselhos apresentados vão desde a boa alimentação até a escolha de bons professores e o cuidado dos pais em observar as crianças em sua formação (hoje em dia, a grande dificuldade dos pais é exatamente esta).
Lembrado como obra que exige a imposição de rigor para se educar a criança, alguns o utilizam como argumento para que a educação seja um processo que contenha castigos moderados e/ou até mais rigorosos. Mas esta é uma leitura errada da obra, porque, contra o uso da dor pela pedagogia, há referência expressa de que a educação se deve conduzir com conselhos e palavras e não por golpes, nem maus-tratos.
Há alguns também que buscam fundar seu entendimento em processos dolorosos para a educação num modelo religioso, de fundo cristão, para o qual, supostamente, o sofrimento é o único caminho para elevar-se na existência. Assim, a dor, confundida aqui com sofrimento, é a via de acesso a todas as dimensões da experiência humana, incluindo-se a educação.
O argumento está baseado numa leitura errônea da paixão de Cristo. Esta indicaria o percurso imposto a Jesus, precedido pela flagelação, em que carrega a cruz com a qual seria crucificado no Monte Calvário. Paixão, neste contexto, significa sofrimento. Se Deus exigiu o sacrifício de seu próprio filho, pelo sofrimento, o percurso da redenção está no sofrimento. Logo, a vida humana é sofrimento, mas sempre sofrimento associado à dor. Para essa visão, educação também é uma via dolorosa e seu processo implica em dor e sofrimento.
Como se disse, todavia, essa visão é incorreta. O sacrifício cristão deve ser lido como um sair de si em direção ao outro e a dor é elemento secundário, porque Cristo não precisava da redenção pela dor. A essência de seu sacrifício é o entregar-se ao outro, à humanidade. Com isso se vê o erro de alguns educadores, principalmente de orientação cristã, de apoiarem-se na dor como meio constitutivo do processo educacional.
Outro erro é misturar-se a compreensão de dor, sofrimento e a paixão cristã. Paixão em seu significado comum quer dizer um conjunto de sentimentos que se opõem à razão e é um termo que vem do latim arcaico “passio”, como é sabido.
“Passio” era um termo importante para a escola estoica do século III a.C., porque traduzia a ideia de “perturbatio”, ou seja, tudo aquilo que perturbava a alma do filósofo. Dessa conotação deriva o significado atribuído comumente ao termo paixão.
Todavia, “passio” deriva da expressão grega “pathos”. Para os gregos, não havia nenhuma conotação pejorativa para o termo. Não era nenhuma perturbação, mas sentimento, entendido como uma disposição emocional complexa, a princípio, nem negativa, nem positiva. Sentimento pode ser de afeto, de tristeza, de amor, de aversão. Não havia conotação pejorativa à priori que indicasse qualquer “perturbatio” para a razão. Ao contrário, podia mesmo servir de apoio para esta. “Pathos” para os gregos era algo suportado pela alma e a colocava em certa disposição, desta ou daquela maneira.
Somente no latim tardio e com os primeiros autores cristãos, “passio” começa a receber o sentido de submissão, principalmente submissão à injustiça. Com a ideia de submissão, o termo passa a ser sinônimo do verbo latino “suffrero”, que dá origem ao atual verbo “sofrer”.Com o caminhar da literatura cristã, paixão e sofrimento passaram a ser utilizadas largamente com o mesmo significado.
O sofrimento tornou-se, assim, a experiência quase insuportável de algo que infundadamente se tem de carregar, com todo peso amargo e desprazeroso que isso provoca. Nos tempos modernos e atuais, em que a felicidade é um consumir e usufruir constantes, o sofrimento é quase uma maldição execrável e abominável e, mais ainda, injustificável.
Um dos filósofos que mais destaca essa questão e para quem sofrimento é um tema central é Nietzsche. Para ele, o conceito de sofrimento é aquele que remete à lição dos gregos, ou seja, a consciência do viver, o percurso ou a disposição da alma, o peso da existência. Nietzsche destaca essa ideia de que a civilização moderna é excessivamente sensível ao sofrimento, e obcecada com seu alívio. Tendo como base a visão grega, Nietzsche aponta a “disciplina do sofrimento”, não como a dor cristã, mas como a força que suporta o peso da existência. Sofrer, para ele, é amparar o peso da existência e devolvê-lo de volta à vida em forma de experiência. Assim, sofrimento nada tem a ver com castigo ou imposição de dor.
Logo, o caminho da educação não estaria em aplicar-se métodos dolorosos, mas, ao contrário em criar mecanismos que demonstrassem que a vida deve ser experienciada. E isso somente é possível a partir dos sentidos. A educação é uma práxis que deve conduzir o aprendiz a perceber-se em seu modo de ser, em sua plenitude ontologicamente indeterminada, mas lançada num mundo. O aprendiz deve ser instado a compreender esse mundo, que é o dele. Para isso, não há necessidade de nenhuma imposição de dor. O caminho não implica em ser duramente castigado, mas antes em permitir-lhe o que lhe dá acesso ao peso da vida e à responsabilidade por sua leveza.
Artigo publicado originalmente no Estadão online
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