Em um excelente artigo publicado no Jornal Estado de São Paulo do dia 18 de março último, o Prof. Celso Lafer faz uma importante reflexão sobre o alcance e o siginificado dos direitos humanos no atual momento de crise provocada pela mudança do modelo sociopolítico mundial. Leia a seguir:
Variações sobre os direitos humanos
Celso Lafer
A palavra “variação” indica as modulações possíveis de um tema. Foi nesta linha que Miguel Reale intitulou como “variações” muitos dos seus artigos, para, sem perder a unidade de sua reflexão, ir ampliando o repertório de suas considerações. É com este intuito que vou propor variações sobre os direitos humanos.
O pressuposto dos direitos humanos é o valor da dignidade humana. Este valor tem uma genealogia: o estoicismo, o Velho Testamento, o cristianismo, a doutrina do direito natural, etc. A sua plena afirmação, no entanto, é fruto da modernidade. Resulta da idéia de que o ser humano, na sua dignidade própria, não se dilui no todo social. Possui direitos, como os pioneiramente enunciados na França, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
A afirmação jurídica dos direitos inaugura a plenitude da perspectiva dos governados. É a passagem, como diz Bobbio, do dever do súdito para o direito do cidadão. Daí a interconexão dos direitos humanos com a democracia. Por isso uma parte relevante da sua tutela diz respeito às liberdades públicas e às garantias voltadas para proteger os direitos do indivíduo contra o arbítrio dos governantes e, concomitantemente, assegurar o pluralismo da sociedade.
O ponto de partida da elaboração dos direitos humanos é o princípio republicano da igualdade e o seu corolário, o princípio da não-discriminação. O desdobramento histórico deste ponto de partida norteia um processo de inclusão política, social, econômica e cultural. Daí, além da extensão dos direitos políticos, os direitos econômico-sociais. Estes estão direcionados para lidar com os problemas da exclusão material, promovendo a abrangência de oportunidades para a fruição dos bens que são criados numa sociedade e necessários para a dignidade da vida.
Um componente da dicotomia inclusão/exclusão se traduz na percepção de que uma das funções dos direitos humanos é a de se ocupar dos mais débeis. Daí a etapa da especificação dos direitos humanos centrada na tutela do ser em situação, vulnerável por várias razões (deficientes físicos, crianças, idosos, mulheres, etc.).
Num mundo interdependente, unificado pela técnica e pela economia, os direitos humanos têm uma dimensão internacional. Esta se positivou com a ONU, em função da percepção dos horrores do Holocausto e do aparecimento em larga escala dos deslocados no mundo, que realçaram a importância do que Kant chamou o direito à hospitalidade universal. Daí a abrangente inclusão dos direitos humanos na agenda internacional, tendo como horizonte a construtiva inclusão de todos na sociedade planetária, em razão das tensões da exclusão que põem em questão a paz.
O processo que sintetizei, da afirmação histórica dos direitos humanos, não é, evidentemente, a marcha triunfal de uma plataforma emancipatória. Não é, também, uma causa perdida, comprometida pela resistência dos fatos. Traduz o empenho dos que acreditam no valor da dignidade humana e que vão lidando com os desafios colocados por distintas situações. São algumas das variações destes muitos desafios que vou, a seguir, mapear.
Lembro, pensando nestes desafios, que Hannah Arendt, em A Condição Humana, chama a atenção para o problema político-axiológico da direção do conhecimento científico-tecnológico. Esta direção assume características inéditas porque, com a inovação do conhecimento, a natureza deixou de ser um dado dotado de permanência, com suas leis próprias e que não são produto da ação humana. Passou a ter a feição da plasticidade de um objeto apto a ser manipulado. Daí a contínua transposição de barreiras antes tidas por naturais.
É o caso da energia nuclear, desencadeada pela ação humana na natureza, que pode, pela destrutividade das armas atômicas, aniquilar a humanidade. É também o da engenharia genética, da clonagem, do uso das células-tronco, dos transgênicos, do transplante de órgãos, da fertilização in vitro, etc. Por isso, a natureza perdeu suas funções normativas que sustentavam a clássica dicotomia direito natural/direito positivo. Hoje, em contraste com a reflexão do passado, é, paradoxalmente, o direito positivo do meio ambiente que busca proteger a ameaçada sustentabilidade da natureza.
O avanço vertiginoso no território do conhecimento se faz sem um mapa predeterminado. Por isso, tutelar o valor da dignidade humana no campo de uma bioética laica é problemático, como o é no da propriedade intelectual. De maneira análoga, a informática e o armazenamento de dados, que permitem a internet, o funcionamento em redes da sociedade contemporânea, diluem a distinção entre o público e o privado e colocam novos problemas para o direito à intimidade e o direito à informação.
O hiato entre os fatos e o direito nas sociedades democráticas de massa é uma das causas da crise do positivismo jurídico. Uma das respostas da Teoria do Direito a esta crise é a distinção entre regras específicas e princípios gerais. Estes têm como função a expansão axiológica do ordenamento para buscar conferir uma integridade moral ao Direito. Neste processo, no entanto, surgem conflitos entre os valores contemplados nos princípios. Por exemplo: as políticas afirmativas, como políticas de reconhecimento na forma de cotas, como se ajustam a uma apropriada aplicação do princípio da igualdade; a abertura para o multiculturalismo requer ou não limites ao princípio de tolerância em relação ao diferente? Por isso a ponderação de princípios é um jusfilosófico parar para pensar o significado do direito positivo.
Em síntese, além das tradicionais resistências aos direitos humanos, novos desafios se colocam para o jurista, no século 21, no trato da dignidade da pessoa humana.
Celso Lafer
A palavra “variação” indica as modulações possíveis de um tema. Foi nesta linha que Miguel Reale intitulou como “variações” muitos dos seus artigos, para, sem perder a unidade de sua reflexão, ir ampliando o repertório de suas considerações. É com este intuito que vou propor variações sobre os direitos humanos.
O pressuposto dos direitos humanos é o valor da dignidade humana. Este valor tem uma genealogia: o estoicismo, o Velho Testamento, o cristianismo, a doutrina do direito natural, etc. A sua plena afirmação, no entanto, é fruto da modernidade. Resulta da idéia de que o ser humano, na sua dignidade própria, não se dilui no todo social. Possui direitos, como os pioneiramente enunciados na França, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
A afirmação jurídica dos direitos inaugura a plenitude da perspectiva dos governados. É a passagem, como diz Bobbio, do dever do súdito para o direito do cidadão. Daí a interconexão dos direitos humanos com a democracia. Por isso uma parte relevante da sua tutela diz respeito às liberdades públicas e às garantias voltadas para proteger os direitos do indivíduo contra o arbítrio dos governantes e, concomitantemente, assegurar o pluralismo da sociedade.
O ponto de partida da elaboração dos direitos humanos é o princípio republicano da igualdade e o seu corolário, o princípio da não-discriminação. O desdobramento histórico deste ponto de partida norteia um processo de inclusão política, social, econômica e cultural. Daí, além da extensão dos direitos políticos, os direitos econômico-sociais. Estes estão direcionados para lidar com os problemas da exclusão material, promovendo a abrangência de oportunidades para a fruição dos bens que são criados numa sociedade e necessários para a dignidade da vida.
Um componente da dicotomia inclusão/exclusão se traduz na percepção de que uma das funções dos direitos humanos é a de se ocupar dos mais débeis. Daí a etapa da especificação dos direitos humanos centrada na tutela do ser em situação, vulnerável por várias razões (deficientes físicos, crianças, idosos, mulheres, etc.).
Num mundo interdependente, unificado pela técnica e pela economia, os direitos humanos têm uma dimensão internacional. Esta se positivou com a ONU, em função da percepção dos horrores do Holocausto e do aparecimento em larga escala dos deslocados no mundo, que realçaram a importância do que Kant chamou o direito à hospitalidade universal. Daí a abrangente inclusão dos direitos humanos na agenda internacional, tendo como horizonte a construtiva inclusão de todos na sociedade planetária, em razão das tensões da exclusão que põem em questão a paz.
O processo que sintetizei, da afirmação histórica dos direitos humanos, não é, evidentemente, a marcha triunfal de uma plataforma emancipatória. Não é, também, uma causa perdida, comprometida pela resistência dos fatos. Traduz o empenho dos que acreditam no valor da dignidade humana e que vão lidando com os desafios colocados por distintas situações. São algumas das variações destes muitos desafios que vou, a seguir, mapear.
Lembro, pensando nestes desafios, que Hannah Arendt, em A Condição Humana, chama a atenção para o problema político-axiológico da direção do conhecimento científico-tecnológico. Esta direção assume características inéditas porque, com a inovação do conhecimento, a natureza deixou de ser um dado dotado de permanência, com suas leis próprias e que não são produto da ação humana. Passou a ter a feição da plasticidade de um objeto apto a ser manipulado. Daí a contínua transposição de barreiras antes tidas por naturais.
É o caso da energia nuclear, desencadeada pela ação humana na natureza, que pode, pela destrutividade das armas atômicas, aniquilar a humanidade. É também o da engenharia genética, da clonagem, do uso das células-tronco, dos transgênicos, do transplante de órgãos, da fertilização in vitro, etc. Por isso, a natureza perdeu suas funções normativas que sustentavam a clássica dicotomia direito natural/direito positivo. Hoje, em contraste com a reflexão do passado, é, paradoxalmente, o direito positivo do meio ambiente que busca proteger a ameaçada sustentabilidade da natureza.
O avanço vertiginoso no território do conhecimento se faz sem um mapa predeterminado. Por isso, tutelar o valor da dignidade humana no campo de uma bioética laica é problemático, como o é no da propriedade intelectual. De maneira análoga, a informática e o armazenamento de dados, que permitem a internet, o funcionamento em redes da sociedade contemporânea, diluem a distinção entre o público e o privado e colocam novos problemas para o direito à intimidade e o direito à informação.
O hiato entre os fatos e o direito nas sociedades democráticas de massa é uma das causas da crise do positivismo jurídico. Uma das respostas da Teoria do Direito a esta crise é a distinção entre regras específicas e princípios gerais. Estes têm como função a expansão axiológica do ordenamento para buscar conferir uma integridade moral ao Direito. Neste processo, no entanto, surgem conflitos entre os valores contemplados nos princípios. Por exemplo: as políticas afirmativas, como políticas de reconhecimento na forma de cotas, como se ajustam a uma apropriada aplicação do princípio da igualdade; a abertura para o multiculturalismo requer ou não limites ao princípio de tolerância em relação ao diferente? Por isso a ponderação de princípios é um jusfilosófico parar para pensar o significado do direito positivo.
Em síntese, além das tradicionais resistências aos direitos humanos, novos desafios se colocam para o jurista, no século 21, no trato da dignidade da pessoa humana.