Por Dentro da Lei

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27 de setembro de 2008

Reformas penais e o Plano de Legislação Criminal de Jean-Paul Marat

Ultimamente estão sendo discutidas nas várias esferas estatais mudanças na legislação penal para tornar mais eficiente o combate á criminalidade. É argumento recorrente que o código penal e o de processo penal são da década de 1940 (mesmo com a grande reforma de 1984 e outras posteriores). Será que o problema estaria mesmo no fato da lei ter uma data antiga ou residiria no modelo que fundamenta o pensamento penal, esgotado em si mesmo, diante de mudanças sociais e culturais do nosso século?

Talvez a leitura dos clássicos nos ajudasse a encontrar uma linha para orientar nossas pesquisas. A sugestão feita aqui é a do Plano de Legislação Criminal de Jean-Paul Marat.

Marat (1743-1793) foi médico, jornalista e político no período da Revolução Francesa, tendo importante atuação na divulgação dos ideais revolucionários, principalmente por meio do jornal que editava "O Amigo do Povo". Embora tenha escrito o Plano alguns anos antes, conseguiu editá-lo em 1790, no auge da Revolução, tendo este servido também de base para a elaboração do Código Penal francês de 1791.

No século XVIII o ocidente conheceu radical mudança em sua estrutura social, por conseqüência de fatores diversos, mas principalmente em virtude de nova concepção de mundo provocada por modelo de pensamento que rompia terminantemente com aquele divulgado no período medieval.

O movimento teórico que arquitetou tais idéias, denominado Iluminismo, pretendia ressaltar a capacidade racional humana e a necessidade de superação da visão política tradicional. Tal movimento provocou a transição do feudalismo para o capitalismo e na segunda metade do século XVIII, esse processo ocorreu em meio a um período conturbado denominado a Era das Revoluções, no qual eclodiram a Revolução Industrial, a Independência Americana e a Revolução Francesa, esta última iniciando nova fase histórica: a modernidade.

A Revolução Francesa é considerada prova definitiva da maturidade burguesa, pois com a queda do absolutismo sepultaram-se os últimos entraves ao capitalismo, derrubando-se a nobreza que vivia dos privilégios feudais e destruindo a base social que sustentava o Estado absolutista, encarnado na figura do monarca. Muito embora possa ser considerada burguesa, a Revolução contou com a soma de esforços do movimento camponês e popular, numa mobilização de camadas de classes.

Na frente revolucionária, Marat ocupava lugar à parte, pois persuadido que em todo lugar o povo caminha para a servidão enquanto os monarcas aumentam seu despotismo, ele tornou-se ardente propagandista do antifeudalismo e da antimonarquia.

O Plano de Legislação Criminal continua o desenvolvimento do pensamento político que Marat havia firmado e as análises contidas valiam para a França da época. Deve-se ter em mente que a obra é fruto de expressão do tempo em que foi germinada e resultado da pena de um autor ciente de sua realidade e que realizou intensa e radical atividade política.

O Plano apresenta sua preocupação com a concepção de indivíduo da época, sendo possível a percepção de excessivo cuidado na reunião de princípios norteadores da aplicação da lei penal. Tais princípios configuram a inflexão de um sistema de modelo feudal para um de modelo burguês, no qual a garantia da produção é fornecida pelo ordenamento legal e todos, incluindo o monarca ou o governante, se submetem à limitação e à ordem da lei. A obra de Marat aponta com clareza este momento em que surge o chamado Estado de Direito, que os autores denominam instalação da modernidade.

Seu projeto retratava a cosmovisão de uma época e seus reflexos são vistos hoje, mesmo em nossa legislação penal, que ainda segue um modelo burguês percebido por Marat em seu tempo. Sua importância, além de colaborar no desvelamento da falácia retributiva numa sociedade sem justiça distributiva, é a de alertar aqueles que se incumbem de preparar, interpretar e aplicar as leis de que seu próprio tempo precisa ser sentido, apreendido e compreendido. Sem isto, como preconizava Marat, as leis são meros decretos nas mãos de tiranos, sejam elas velhas ou novas.

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