Por Dentro da Lei

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7 de abril de 2023

Sexta-Feira Santa: um ensaio à luz da fenomenologia-hermenêutica

 Qual um sentido possível hoje para se rememorar a crucificação de Cristo ?





A Sexta da Paixão é a data que relembra e indica o percurso imposto a Jesus, precedido pela flagelação, em que carrega a cruz com a qual seria crucificado no Monte Calvário. Paixão, neste contexto, significa sofrimento e a Sexta-feira  Santa seria, assim, um dia de luto e comoção.


Paixão em seu significado comum quer dizer um conjunto de sentimentos que se opõem à razão e é um termo que vem do latim arcaico "passio”. 


“Passio” era um termo importante para a escola estoica do século III a.C., porque traduzia a ideia de “perturbatio”, ou seja, tudo aquilo que perturbava a alma do filósofo, que deveria ser “impassibilis”, vale dizer, deveria manter-se livre de qualquer perturbação ou inquietação, para fazer uso da tranquilidade da razão. Desta noção deriva-se o significado hoje atribuído comumente ao termo paixão.


Todavia, “passio” deriva da expressão grega “pathos”. Para os gregos, não havia nenhuma conotação pejorativa para o termo. Não era nenhuma perturbação ou inquietação, mas indicava a ideia de disposição da alma, que hoje pode ser traduzida por sentimento, entendida como uma disposição emocional complexa, a princípio, nem negativa, nem positiva. Sentimento pode ser de afeto, de tristeza, de amor, de aversão. Não havia conotação pejorativa à priori que indicasse qualquer “perturbatio” para a razão. Ao contrário, podia mesmo servir de apoio para esta. “Pathos” para os gregos era algo suportado pela alma e a colocava em certa disposição, desta ou daquela maneira, dependendo de como era dado esse algo.


Somente no latim tardio e com os primeiros autores cristãos, “passio” começa a receber o sentido de submissão, principalmente submissão à injustiça. Com a ideia de submissão, o termo passa a ser sinônimo do verbo latino “suffrero”, que dá origem ao atual verbo “sofrer”. 


Com o caminhar da literatura cristã, paixão e sofrimento passaram a ser utilizadas largamente com o mesmo significado. Para os autores cristãos, porém, sofrimento era um mergulho apaixonado e fervoroso na direção da Graça divina.


O advento das chamadas escolas literárias após o renascimento, principalmente o Barroco e o Romantismo, conformaram a ideia de sofrimento à sua conotação negativa de padecimento, como um suportar de dores, injúrias e injustiças.


O sofrimento tornou-se, assim, a experiência quase insuportável de algo que infundadamente se tem de carregar, com todo peso amargo e desprazeroso que isso provoca. Nos tempos modernos e atuais, em que a felicidade é um consumir e usufruir constantes, o sofrimento é quase uma maldição execrável e abominável e, mais ainda, injustificável.


Por conta disto, principalmente hoje, somos inclinados a ver na Paixão de Cristo um dia de mortificação, no qual o enlutar-se é a conduta mais adequada e o entristecer-se o sentimento mais eloquente.


O exame acima mostra o contrário. O sofrimento de Cristo busca indicar um encontro. Um encontro da paixão como resgate daquela disposição da alma que nos leva ao sentido máximo de nossa existência. O sentido da existência de Cristo se deu na morte, porque com ela foi revelada sua natureza divina, seguida da ressurreição.


O sentido de nosso viver não é dado com a morte. Esta pode nos revelar o momento da nossa finitude. E essa angústia do fim pode vir a apontar para o real sentido da nossa existência. Aqui também reside o exemplo da Crucificação de Cristo.


Apartado do luto, o significado da Paixão pode ser pensado como uma reflexão sobre o sentido de nosso existir. A morte de Cristo foi sua finitude, mas foi também a plenitude de realização de seu existir, como promessa anteriormente dada. Na morte, ele se efetivou como ser que era possível ser.


Na morte, não efetivamos nosso existir. Ao contrário, é no existir que efetivamos nosso ser a cada possibilidade que se nos abre e é realizada. Na existência realizamos nosso poder-ser.


A Paixão de Cristo não é um dia para o luto, mas uma oportunidade de refletir e nos lançarmos perguntas.


Qual a plenitude de meu existir? Quais as possibilidades de minha existência? Consigo vislumbrar aquilo que posso ser? Minha disposição de alma, meu “pathos”, é a que me permite encontrar-me com meu poder-ser?


Que a Sexta-Feira Santa nos permita essas reflexões!

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