Por Dentro da Lei

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27 de outubro de 2014

Aranhas e macacos: variações sobre o racismo

Publicado originalmente no blog do Jornal Tribuna do Direito
(para ler no site, clique aqui)


Aranha, goleiro do Santos
(blog Tribuna do Direito)

No domingo 19/10, o goleiro do Santos, Mário Lúcio Duarte Costa, o Aranha, concedeu entrevista à Folha de São Paulo, a respeito dos xingamentos contra ele proferidos, em jogo de seu time contra o Grêmio.

Seus argumentos podem ser divididos em duas linhas: a da luta contra o preconceito racial e a da necessidade de se punir a principal autora das ofensas, a torcedora gremista Patrícia Moreira.

A divisão é necessária à análise crítica, para se evitar o erro duplo que a maior parte da mídia cometeu ao repercutir o episódio, i.e., apresentar de modo heroico a indignação do jogador e de modo desmedidamente execrável a ação da torcedora, em categoria maniqueísta, que retira a complexidade real da questão e impede discussão efetiva sobre o foco central do problema, o preconceito em si.

A repercussão simplista se inicia por classificar a conduta em única expressão, a de “racismo”. Do lado do “bem”, se teria a vítima que sofre e combate o racismo, enquanto do lado do “mal”, estaria a racista odiosa e repulsiva, cuja punição deve ser a mais pesada possível, pois racismo é algo inaceitavelmente repugnante.

Ninguém é a favor do racismo, por óbvio. O problema nasce quando se pergunta “o que é racismo”. Dependendo do conceito apresentado, haverá diferentes formas de se trabalhar com o fato.

Basicamente, racismo seria o tratamento desonroso, depreciativo e indigno dado a outrem por conta deste pertencer a uma “raça” distinta, normalmente à raça negra, porque a esta se associava a ideia de escravidão e o escravo negro seria um ser vivente de categoria inferior ao humano, representado pela figura do senhorio branco. Racismo, portanto, seria a ação de inferiorizar ou oprimir simplesmente por característica pessoal de ordem étnico-biológica.

Após o projeto de mapeamento do genoma humano, há outra linha que entende o conceito de raça não como de ordem étnico-biológica, porque só existiria a “raça humana”, única. A ideia de raça, assim, atenderia divisão segundo critérios político-sociais mais abrangentes.

Além disto, racismo não seria conceito universal. O goleiro Aranha dá exemplo, ao dizer que foi chamado de “negão” por torcedores negros do Grêmio. Se o goleiro e o torcedor adversário fossem americanos, jamais o último se referiria ao primeiro de forma depreciativa com o similar inglês “negro”.

Utilizando o conceito normativo, segundo a Lei nº 7.716/89, racismo é impedir o exercício de direitos subjetivos de alguém por conta de raça, cor, religião, etnia, ou procedência nacional. É também incitar o preconceito de forma difusa.

Pela lei, racismo é algo muito mais amplo do que a divergência pela dimensão biológica. Não é, como nos EUA, por exemplo, uma questão de cor da pele somente. Nosso racismo tem conotação muito mais social, pouco explorada. A mídia e a opinião popular preferem importar um problema a tentar efetivamente cavar suas raízes.

Mais uma vez, socorre-se de Aranha. Diz ele: “Eu não digo que o Brasil seja um país racista, mas é um país que carrega um vício antigo”.

Esse “vício antigo” a que se refere Aranha é o preconceito social, vinculado muito mais à divisão de classes do que a critérios raciais. Racista aqui é basicamente o indivíduo socialmente superior, que, por condições econômico-sociais e financeiras, julga-se num nível acima de outros. Por isso, o racismo legal aponta critérios mais amplos do que o biológico.

Uma última palavra sobre a conduta da torcedora Patrícia Moreira. Ela não praticou racismo e, como disse Aranha, ela não é racista. Ela cometeu ação que pode ser enquadrada no delito de injúria qualificada por preconceito, previsto no art. 140, § 3º do Código Penal.

Este trabalho de examinar o crime, pelo qual ela já foi indiciada em inquérito policial, será do magistrado respectivo e não quero entrar nele agora. Gostaria apenas de ressaltar que a luta contra o preconceito deve ser vigorosa, mas sempre dentro das balizas democráticas em que se insere inclusive o direito criminal.

A punição a que a jovem está sendo submetida vem superando exageradamente a esfera penal, porque se estende a seu trabalho (ela perdeu o emprego), a sua residência, incendiada, a sua família, que está sendo hostilizada e a sua imagem, atingida em sua dignidade. Se ela praticou um crime – e isto tem de ser analisado com todo cuidado – ela deve responder por ele no limite exato da norma penal e jamais ser julgada quanto a categoria de sua humanidade. Fazer isto seria retomar tempos de barbárie e assumir outra forma de preconceito.

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